josé torres
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« em: Janeiro 03, 2009, 19:37:04 » |
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SaÃa de casa bem cedo como sempre fazia a cada sábado. Cestinha de vime debaixo do braço para colocar as compras, lenço minhoto na cabeça resguardando os sedosos cabelos grisalhos. Mariquinhas era uma figura conhecida na vila. Simpática e bem-disposta, a todos cumprimentava à sua passagem, mesmo as velhas rezingonas da sua geração que nunca lhe perdoaram o facto de não ter usado luto após a morte do marido, que fazia um bom par de anos se havia despedido desta vida de forma tranquila durante o sono. Não lhe fazia qualquer mossa o olhar baixo, os cochichos em surdina, as histórias inventadas. Fazia mesmo questão de parar e perguntar com uma certa ironia a cada uma como iam seus maridos, sabendo que isso as deixaria a ferver de irritação. Apesar dos seus sessenta e oito anos, Dª Mariquinhas era uma mulher de feições bonitas, que as rugas não estragavam, com uns olhos verdes profundos que pareciam plantados no rosto e lhe davam um encanto quase mágico. E apesar de gozar de fama inventada pela inveja, nunca ninguém a viu a namoriscar homem algum que fosse, muito menos os daquelas que a difamavam pelos bancos do salão de chá, que muitos lhe dirigiam por vezes piropos ao seu passar, tocados desde sempre pela sua beleza sem idade. Comprava alguma fruta e hortaliça no mercado, mas o que não podia faltar nunca na sua cesta era um belo peixe que escolhia na banca do Sr. Fonseca, mais umas ovas que este sempre lhe guardava nesse dia. - Para o seu Alexandre Dª Mariquinhas… Assim se chamara em vida seu marido, mas o destinatário da iguaria era agora um gato de pêlo longo, que adoptou no preciso dia em que seu homem foi a enterrar. Apareceu-lhe na porta ronronando e não mais a largou, afectuoso e companheiro. Já tinha dois em casa mas não podia deixar de acolher aquele felino nunca avistado pelas redondezas. Deu-lhe sem saber bem porquê o nome daquele que amou a vida inteira, com quem viveu uma bonita história de amor, apesar de nunca terem conseguido ter filhos. Seu defunto marido tinha sido um excelente carpinteiro. Muito requisitado para trabalhos de reconstrução e restauro, nos quais era um verdadeiro artificie. E tinha ainda tempo e gosto para ao final do dia, nas horas livres, construir fantásticas maquetas de aldeias, onde não escapava nenhum pormenor da vida rural. A sua oficina estava cheia de magnÃficos exemplares da sua arte. Não faltavam miniaturas de casas minhotas com seus alpendres e terreiros, com as alfaias minuciosamente esculpidas, os telheiros, as cortes dos animais e os próprios bichos desenhados a canivete, parecendo que havia vida por detrás de cada pedaço de madeira talhada. No telhado da Igreja de uma dessas aldeias imaginárias até um galo, de pescoço eriçado parecendo querer acordar o mundo tal a minúcia fina com que foi trabalhado. Depois as tintas com que as peças eram coloridas pareciam emprestadas pelo espectro do arco-Ãris, conferindo à s obras, desconhecidas de todos até ao momento, um fantástico calor humano. Mariquinhas conservava a oficina intocada. Limpava o pó e uma ou outra teia de aranha, varria o chão e a bancada, como se preparasse o regresso daquele que amou a vida inteira, e esperasse ainda ver surgir das suas mãos calejadas uma última obra de arte. Alexandre, o gato, escolheu a oficina para as suas longas sestas. Esparramava-se nuns sacos de juta que estavam dentro de uma caixa e aà passava longos perÃodos do dia, só regressando a casa pela noitinha, para saborear a comida quentinha que a dona lhe preparava, envolvendo-se depois nos mimos do seu colo, os dois baloiçando tranquilos na cadeira que Alexandre, o homem, fez um dia com engenho. Todas as semanas um ritual de coisas tranquilas preenchia a vida daquela mulher. Acordar cedo para fazer um ou outro trabalho no jardim, o chá ao final da tarde, a visita a um ou outro amigo verdadeiro que tinha. Poucos. Porque era sábado a cada ciclo de vida passado, porque era dia de vozes mais cedo pela madrugada, de carros de bois descendo os montes e cujo ruÃdo não se misturava ainda com o das carrinhas, que esses venciam as distâncias com cavalos. E nesse outro, de cesta de vime ajustada no braço, de cabelos soltos que não encontrou o lenço no sÃtio costumeiro, saiu rumo ao mercado de lista de compras na cabeça, na certeza de todos os sábados que ainda estavam para vir, viessem ou não. Encontrou o Sr. Fonseca, altaneiro como sempre, na sua banca de mármore antigo. O bigode grisalho dava-lhe ar de pescador que não era. Os óculos, honorabilidade e respeito. Todos achavam piada ao seu jeito desprendido, sabedor. Tinha sempre uma história afiada na lÃngua, que o pequeno esmeril aguçava no mesmo momento das facas de amanhar o peixe. Experiente, viúvo como Mariquinhas, naquele dia não resistiu a fazer graça com a sua cliente. - Ã’ Dona Mariquinhas, então quando se casa? Não me leve a mal, mas senhora bonita como é, que até parece que o tempo parou quando viu os seus olhos… cuidadosa para com os seus gatos, eu imagino com um homem… - Então Sr. Alberto… Chamou-lhe assim porque o galã sempre que contava as suas histórias metia nelas um personagem de nome Alberto, que era afinal o seu próprio nome, lançando a dúvida nas mirabolantes histórias que contava, semeando a gargalhada naqueles que o ouviam. Maria corou. O diminutivo era coisa que lhe vinha de criança quando trigueira se perdia pelos campos. Corou de se sentir mulher. Guardou as ovas de sempre e o peixe fresco na cesta, virou costas com encanto ao decano senhor, que guardou nos olhos um sentimento sem idade, sorrindo. Naquele dia todos os gatos comeram o seu peixe cozido. Um porém não o fez. Nem nas ovas tocou. - Então Alexandre, que se passa contigo? Não comes? Alexandre refugiou-se na oficina, de passo solto. Encolheu-se no seu canto com os olhos húmidos, fosse possÃvel aos gatos chorar e ninguém diria que aquele não o fazia. Enroscado, com o focinho poisado numa pata, lambendo as lágrimas. - Que tens meu bichano? Diz-me porque estás triste meu amor? O gato olhava a sua dona que descera ligeira as escadas atrás de si. Parecia querer dizer-lhe algo, mas nem um miar esboçou. De repente, como que lembrando-se de algo, saltou para uma prateleira alta, retirando com a boca um pano que cobria um objecto. Desatou a miar o mais alto e frequente que conseguia. Mariquinhas entendeu que o gato queria que retirasse aquilo que ali estava. Subiu a uma cadeira e pegou numa maqueta empoeirada que nunca vira. Com um pano limpou-a como se a acariciasse, vislumbrando pouco a pouco aquilo de que se tratava. Era a sua própria casa. O seu jardim, a oficina, meticulosamente trabalhados e retratados. Duas figuras estavam no compartimento das madeiras e das bancadas. Uma representava-a, e a outra era de Alberto, aquele simpático homem que lhe vendia o peixe. Mas o mais fantástico é que a seus pés se enroscava um gato com a corpulência e as cores daquele que agora a observava do alto da prateleira. - Maria Menina percebeu de repente toda uma vida. Os seus olhos verdes ficaram ainda maiores. Pegou o gato com as mãos bem abertas e apertou-o no peito. Choraram os dois da forma como é permitido aos gatos e aos homens. É sábado na Vila. Mariquinhas acordou tarde. Saiu novamente sem lenço, sabendo no entanto onde o guardara. Em direcção ao mercado. Depois das compras habituais e de um encontro com o filho do Silveira, seu colega da escola, mas um valente atrevidote, que passou toda uma vida a segredar-lhe intenções aos ouvidos, Maria solta e renovada dirigiu-se à peixaria, este sábado pronta a enfrentar com um sorriso as brincadeiras de Alberto. Porém não estava. Foi uma outra cliente quem lhe contou a inusitada novidade. O Sr. Fonseca tinha sentido alguns problemas de saúde e havia sido internado. Quem o descobriu tombado foi a sobrinha mais nova, que logo correu a chamar os bombeiros ali próximo de casa. Mariquinhas não precisou de ouvir mais nada. Meteu pés ao caminho até ao hospital da Misericórdia. Deixaram-na ver o seu amigo. Estava entubado, rodeado das suas três sobrinhas: Diana, Sandra e Tânia, que eram filhas da sua falecida irmã, filha tardia de seus pais. Mais nova vinte e tal anos. A todas acolheu em casa, vivendo sob os seus cuidados. Notava-se que gostavam do tio, sem interesse e que estavam deveras preocupadas com a sua saúde. Havia sofrido um pequeno enfarte, sendo reservado o prognóstico. Mariquinhas acercou-se do galã, afagando-lhe o cabelo ralo. - Meu amigo, temos tanto que falar… Alberto Fonseca tomou a sua mão. E disse baixinho o suficiente para só ter sido percebido por ela: - Pode esperar por mim que eu volto. E voltou. Voltou passados meses, de saúde para habitar a casa da mariquinhas que sempre assim se chamou. Foi recebido no seio de uma mulher que sabia domar o tempo, em estranha comunhão com um gato sereno e corpulento.
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