Djabal
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« em: Fevereiro 13, 2009, 13:57:47 » |
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Passamos, eu e Fiona, por uma fatia de melancia pousada na beira da calçada. Do tamanho de um hotel. Parte da fruta no prato do Jardim em São Paulo. Esse hotel pertencia à famÃlia do ex-futuro-nunca- marido. FamÃlia que, além de porto de areia e loja de automóveis, também possuÃa um tÃtulo de miss e um casamento com um campeão do quarto centenário e uma fábrica de calçados, depois falida. FamÃlia notável. Cheia de notas. Estávamos no dia de finados. Caminhávamos pelo parque do Ibirapuera, olhando as pessoas. Exercitando-nos sem muito esforço, observando a ginástica dos orientais. A paz do lugar fora transformada com o passar do tempo; o convÃvio de muitas pessoas tornou o jardim um local de elétrica tranqüilidade. Estava no ar uma pressa, uma alucinação, contidas pelo exagero de espaço ou pela linha do horizonte. Também havia o feriado, a compulsão pelo descanso, mesmo daqueles que preferiam trabalhar.
O pai da minha amiga ganhou muito dinheiro no jogo, e perdeu. Ensinou o valor da imagem de uma pessoa. A mãe, dona de casa, disciplinadora, jamais admitiu qualquer veleidade. Fiona casou virgem aos vinte anos. Avaliou o marido por uma ficha cadastral bastante minuciosa. Além disso, um pouco mais velho que ela, um homem bonito, rústico, musculoso, forte, e carinhoso. O poder emanado dele afugentava, e o caráter bonachão a atraÃa. Fechou os olhos para a fúria dos sentimentos e declarou-se apaixonada. Celebrou sua cerimônia e viveu em função dela.
Hoje é viúva com dois filhos. Está, comparada a mim, muito bem. Recebeu uma herança razoável, não precisou trabalhar. Mora aqui por perto. Carro do ano. Falecido o marido, comprou um cachorro. Ela, casada, dizia detestar animais. Não perde um show do Marilyn Manson. O filho mais velho largou a faculdade, toca ‘didjeridoo’, um instrumento dos aborÃgenes australianos, nas ‘psytrance’ em ‘rave’. Tem um aspecto bastante agressivo, olheiras, cabelo encaracolado, grudado na cabeça envolvida por uma coroa de louros, barba rala, musculoso, a figura de um romano decadente e entediado.
Passou pelo Goa Trance, morning, night, grove, progressive; com Goa Gil, encontrou vitrÃolo para derreter o cérebro. A filha é a sua única companhia de todos os dias. Vive como um satélite. Um rosto simétrico e harmonioso. Vai à praia com maiô. Não freqüenta as festas do irmão. Tem outro gosto musical: romântico. Outro dia, estávamos na praia, ela caiu da cadeira quando soltaram um rojão por ali. Com quinze anos, assusta-se também com a possibilidade da mãe voltar a namorar. Fiona faz todas as vontades dos filhos. Agora, fez uma dieta estarrecedora. Perdeu muitos quilos, disse que eles eram todos os desejos irrealizados pelo falecido. A filha estreitou sua órbita para o ponto anterior ao da colisão. Reatamos nossa amizade, depois de anos de separação, do ponto onde paramos. O tempo não passou. Existe algo que me fascina no seu estilo de viver.
Neste momento, devo esclarecer que jamais consegui casar. O meu ‘ex’ veio de um casamento fracassado e passou a viver comigo, depois de intimado. Primeiro pediu e recebeu autorização da mãe. Antes, foi alertado dos riscos decorrentes de outro fracasso. Não sei dizer se a sogra é uma sibila ou cigana, mas, reconheço, conhece bem o filho que tem. Desfeito o casamento e divididos todos os bens, fiquei assim: com as dÃvidas e o faturamento da empresa. Este último cada vez menor.
Durante o passeio, contei-lhe que tenho um namorado. Não sei exatamente o que ele faz. Escreve poesia o dia inteiro – haicai renga. O dia inteiro para produzir três frases. A beleza da letra. O conteúdo do verso. O tamanho. A rima. Tudo conta. Ele vive pregado ao papel como uma mosca. O falo é pouco, a fala também. O entusiasmo e o prazer vêm rápidos. Exceto quando está curvado sobre a mesa. Ou pensando. Diz que se alimenta da floresta. Ingere pólen. Geléia real. Mel. Peixe. Cogumelo.
“ pássaros migrando por toda a minha vida ceifar tudo que plantoâ€
Um poema como esse é o seu objetivo. Confesso que não o entendo direito, não consigo ver as coisas como ele vê. Mas sinto uma força estranha que me empurra em sua direção. Não consigo ficar distante. Será que é porque não consigo dominá-lo? Será a ansiedade de não me pertencer e ser distante que me estimula esse sentimento poderoso? Sexo não é, posso garantir. Nenhum homem me satisfez, não perde tempo com isso.
Ouço dela: “Alba, largue esse cara pra lá. Jamais será ninguém. Haicai. Ai, meu Deus. Só você pra atrair gente assim. Deve ser alguma praga. Você não tem tempo para ser sonhadora. Precisa sustentar a sua filha. Pagar a escola. Aluguel. Prestações. Arranjar um emprego melhor. Ter mais crédito. Você é bonita, mas não se veste com roupa de marca. Outro dia li que as japonesas querem até lamber o Marylin Manson. O tom muito branco da pele e o muito escuro da roupa as enlouquecem. Tudo é imagem, minha cara. Sexo não existe dentro do casamento; nem vida.â€
De nada adiantou a minha argumentação de estar próxima de fechar um grande negócio.
A minha ex-sogra me apresentou um amigo da famÃlia. Um empresário que trabalha com ferro e aço. Construiu uma fábrica numa cidade vizinha e pretende me contratar. Conversamos muito. Ele me ofereceu uma posição intermediária de chefia. Fala grosso, tem voz forte. Apaixonado pelo que faz. Não tem tempo para nada.
Marcamos um jantar para conversar a respeito. Ponderei que a proposta feita não é suficiente para cobrir minhas despesas fixas. “Você perde uma chance de ouroâ€, respondeu. “As coisas estão muito difÃceis, você não é nenhuma miss, nem menina. Entretanto, posso oferecer uma posição melhor. Você ganhará muito mais, e cuidará de mim, também. Estou separado.†Durante a nossa conversa, puxou a carteira para pagar a conta, deixando cair quatro camisinhas sobre a mesa. Sem se dar por achado, colocou-as de volta. E terminou: “Que achou da minha proposta? É final.†Tomei a iniciativa de levantar antes de dar qualquer resposta. Estava inteiramente perdida, ofendida, necessitada e ferida no meu orgulho. Não consegui responder nada. Apenas tentava voltar ao ponto original, sem levar em conta esse atalho imprevisto.
“Tá vendo?†– retrucou Fiona. “A sua sogra arranja uma oportunidade como essa e você está esperando o quê?â€
Volto para casa. Assisto a um show dos Rolling Stones. I can't get no satisfaction. A banda superou a questão da idade. Dançar e cantar com alguns senhores no palco, parecidos com pontos de exclamação enrugados, de ponta-cabeça e dançantes, não é uma tarefa fácil de ser conseguida. I can't get no satisfaction. É emocionante a vibração deles e do público. Uma comunicação integral sem palavras. Nos intervalos, são apresentadas entrevistas de outras épocas, principalmente na dos vinte anos. 'Cause I try and I try and I try and I try. Perguntado se ele imaginava cantar aos sessenta anos, respondeu imediatamente: “Claro. Por que não?†Outra pergunta: “O que você pensa quando canta?†“Nada, eu sinto.†Mais uma: “Quando vocês vão parar?†“Nunca. Amo o que faço, enquanto continuar assim, cantarei.†I can't get no, I can't get no.
Recebo notÃcia de que meu negócio foi pro buraco. Saio para dançar. Gosto de fazer ginástica e da dança. Aproveito o horário para pensar. Esquecer. Lembrar. Adormecer e acordar.
Diante das opções que eu tenho; do conselho da melhor amiga; da necessidade absurda pela qual estou passando; diante do carro apreendido por atraso na prestação; da pressão que as coisas e fatos exercem sobre mim; da possibilidade de fazer uma pequena grana vendendo aço e ferro, não me resta alternativa: vou tentar agarrar o meu poeta paladino.
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