marcopintoc
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« em: Março 07, 2009, 00:27:14 » |
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Estas ruas. Este incessante desfilar de casas pobres onde moram os peixes mais pequenos do oceanário da ganância. Estas ruas pedem ao natal que se esqueça delas para que não seja maior ainda a sua vergonha. Nestas parcas mesas engolem-se consoadas curtas de salários atrasados e muitas bocas para alimentar. As armas estão encostadas à arvore; nos presépios de alguns a manjedoura do menino é usada para esconder a dose que vai ser dada à hora da missa do galo. José desejava tanto ser um desses , um que tivesse algo para dar . Todavia tal não sucedia. E era noite de Natal e não havia bucha para encher o bandulho das pequenas e não havia um resto de pó para acalmar a ânsia. José tremia junto à mesa, Maria tremia sobre o colchão. As frágeis pernas da mulher eram bambus descontrolados bafejados por uma má ventania , joelhos feitos castanholas a tiritar a falta do produto. E era noite de Natal e as pernas não se iriam abrir para os euros suficientes que acalmariam a fome do estômago e da veia. Esta noite seria infrutÃfero caminhar a avenida à espera dos homens dos carros escuros, do vidro que descia revelando um olhar sem amor e com pressa. Hoje eles trariam as esposas e as crianças. Não podiam parar para um broche ; a cama da pensão mais triste da cidade ficaria órfã do arfar dos senhores sérios e das putas agarradas . A Maria só lhe restava esperar que a cena do José fosse verdade. Que não fosse mais uma tanga , que não fosse mais uma das constantes mentiras de quotidiano do agarrado. As coisas que nunca aconteciam, o tipo que nunca aparecia , o cavalo que era mal aviado. A cena que não dava e não havia nada para dar. Maria entre duas convulsões do estômago ,antes da cãibra que subiu desde a planta do pé, lembrou-se que era natal. A seguir ressacou mais um bocado. E José esperava. E esperava com a ansiedade que a heroÃna cria no corpo dos seus filhos; cada segundo uma eternidade ,cada minuto mais um pedaço de dor. A camada de suor que lhe escorria pela testa sabia a todos os fedores que um corpo pode comportar. Os olhos de José tremelicavam a rua, esperavam as luzes do carro que o Galego tinha ido buscar. Para irem fazer a cena. Para irem à bomba. Rapinarem a bomba para depois darem bombas. O Galego dissera “Porque hoje é natal quero caldar um grande peruâ€.
Mas era noite de natal e não havia nada para dar. E lá do canto, onde ficavam os colchões mais limpos, uma voz veio. A mais velha ; fruto do amor de Maria e de um agarrado qualquer que já cá não estava. Da sombra o vulto magro inquiriu: - Hoje é Natal. O que vamos comer? O punho de José ergueu-se e puniu a insolência da trémula figura de uma criança que sabia mais da miséria que da brincadeira, que se chamava Sara e que agora sangrava do canto da boca. O padrasto; olhos esgazeados , saliva e raiva expelidas a curtos centÃmetros do pequeno rosto : - Cala-te caralho ou fodo-te a puta da tromba E lá do colchão sujo , Maria nada dizia. A filha nem ousou desperdiçar um canto de olhar em direcção à figura de tez acinzentada que se contorcia ignorando o código genético mais básico. Sara sabia que não tinha mãe que a acudisse. Afastou-se. O silêncio dos olhos no chão. A manga da camisola de fato de treino estancando a ferida. José voltou a olhar pela janela. Onde é que estaria o Galego? Um silêncio, entrecortado em respirações ofegantes e calafrios, durou alguns segundos: - Pai? Era mais de menina pequena a voz que agora vinha do canto das crianças. Por alguns segundos a abstinência de José fez uma pausa e ele conseguiu sorrir ao vislumbrar a figura da filha. Da genuÃna, o fruto do ventre que ele havia ejaculado sem cuidados uns dias após conhecer Maria . Filipa era um tiro falhado na roleta russa que se joga com seringas e peles cruas. Filipa ainda tinha no rosto e nos olhos resquÃcios daquele que havia sido o seu pai antes dos dias do cavalo. José pegou com evidente dificuldade a criança ao colo. Um passo rápido para a frente impediu a queda. O seu centro de gravidade estava a duas gramas de distância. E o Galego nunca mais aparecia. A menina disse - Pai . O Pai Natal vem cá hoje? E Filipa quis saber - E entra por onde se não temos chaminé? Na janela da barraca piscaram uns sinais de máximos. “Um , dois , um, dois†contou José já abstraÃdo da criança ao seu colo. Desculpou-se, enquanto pousava apressado a filha e dirigia-se, com evidente nervosismo, à porta: - Filha , ouve , o Pai tem que bazar mas ... o pai natal , entra pela porta . Deixa dinheiro e coisas fixes . Se abrires os olhos só um bocadinho consegues vê-lo. É um senhor de vermelho E abalou , a porta fechada com estouro arrancou alguma consciência em Maria que se arrastou para a sanita . Antes de gorgolejar réstias das suas entranhas enxotou a filha de volta ao seu canto. (continua)
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