Mel de Carvalho
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« em: Novembro 22, 2007, 21:39:29 » |
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O barrento da hora arrasta o azul do rio em enxurrada lenta, demorada.
Vazia, a casa velha, fala a voz das paredes pelejadas de silvados e d’heras. Na hora exacta, na exacta medida, adensam-se silêncios nos cheiros putrefactos das últimas rosas. Encarquilhadas, desfolham-se e logo são, não mais que desnudas flores de um tempo vão… No desvão das escadas empinadas a um céu pálido d’aguarelas, urtigas trapaceiras mordiscam afadigadas, já sem determinação ou energia, pernas finas de abelhas e de moscas. Insectos banais, pequenos, residuais, do reino dos animais.
No escurecido cinza dos quintais, nespereiras bravas, laranjeiras anãs, enterram radicais livres na grama e na greda. A sebe verde, recém cortada, revela a cena até então resguardada d’olhares alheios. Nos tons de todas as cores, subsistem à vista desarmada, delÃrios enredados na teia alterosa dos sentidos - coisas menores, archotes sem brilho, sem flama.
Ao Sol poente, na sede de lÃmpidas águas e p’las veredas, já esgotadas, escorem-se no gesto tÃtere do vazio, Tágides, ninfas do rio, causticadas de escutar sapos falantes em delÃrios onÃricos e inconstantes.
Não, não mais bocas indecorosas a beijarem a minha voz! Não mais prosaicos instintos, dissimulados na volúpia descamisada em trevos de quatro folhas. Rebusco no barro e na greda, a pedra lapidar de um sorriso, o toque harmonioso do beijo colibri a adejar fraga no teu olhar. O afago lento, tegumento, pele na minha pele. O meu nome inscrito no teu tempo… no teu tempo.
Respondem-me glaciares escorrentes, ausentes d’afectos e de flores. Restam-nos atavios desfeitos, correntes ventososas, lamelas funiculares. Vendavais inóspitos, desconvenientes no galope de querer ser gente, tais cavalos tauromáquicos, sem redondel, cela ou freio.
Na berma da calçada, a verdade amareleja envelhecida na busca das suas múltiplas vertentes. Articula-se em sons de um sol ausente, reformula-se condensada nos traços imprecisos do branco cal com que se demarcaram os limites da estrada. Delimitada, quando, no baixio, lá mais à frente e lateral ao rio, metálicos comboios viajam a tarde, perfilados, sem servo-freios. Vagões cúbicos, carregados a carvão, prosseguem por sobre carris desnivelados. Recurvam quebrantados na gravilha solta por dentro das chulipas da madeira. O chão é agora a noite, a noite inteira…
À tarde das horas mudas, faúlhas incendiárias, rebolam definitivamente jazidas no fundo do rio. Não, não sinto o frio!
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