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Autor Tópico: O Urso, parte 1 (de 2)  (Lida 1592 vezes)
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NunoMiguelLopes
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Não vou gostar nada do dia de hoje, pois não?


« em: Maio 27, 2009, 22:03:48 »

Nesse dia Mihalis andara com o irmão Elenis aos pássaros e encontrara no regresso a mãe e as irmãs vindas de apanharem a lenha. Os cinco caminharam o que faltava caminhar até à casa e lá dentro o pai esperava-os. Sentava-se à mesa esfarrapado e cheio de sangue no rosto e nas barbas, braços e peito. Sobre a mesa de pinho onde a família comia as magras refeições estava o jarro de hidromel por onde o pai bebia, e já ia a meio, e a cabeça inteira e aberta ao meio de um urso.

“Savedris†exclamou a mãe perante o estado deplorável do marido. Largou os toros que trazia nos braços e correu para ele. “Estás morto, homem?â€

“Mordido e mastigado†respondeu ele, “mas à mesma vivo e com ganas de vos beber o último jarro de hidromel, se não se importam que o faça.â€

“Que se passou, pai?â€

Mihalis não tirava os olhos da cabeça decepada, e esta devolvia o olhar com a ferocidade intocada. Talvez, se tanto, um pouco distante. Ajudou o pai a despir as vestes rasgadas e ainda frias da água do rio para que a mãe pudesse cuidar das feridas. Estas eram feias e fundas na história de horror que manifestavam. As meninas estavam assustadas. Ciamis fechou a porta da casa para deixar lá fora frio e ursos. Depois deu a mão à mais nova de todos, Karis, e as duas sentaram-se do outro lado da mesa, o mais longe que puderam do monte peludo, os olhos saltando entre a cabeça de urso e o pai. Elenis, o outro irmão, avivou o fogo com a lenha trazida pelas irmãs e ficou a ouvir e a acirrá-lo. Não era um final de dia diferente dos outros, excepto que havia uma cabeça de urso na mesa onde comiam e o pai estava pálido e trémulo em gestos e em voz.

“Melhor faria o Infante†disse o pai, “em mandar por despacho avisar todas as criaturas daqui até Morgo Rau e daqui até Todor do atraso da Primavera, que este Inverno não dá ares de ter para onde ir nem pressa de lá chegar.†Levantou o jarro com uma mão a tremer. Bebeu parte e parte derramou-se pela barba. “Os ursos estão a sair da terra e não têm o que comer cá fora. Trazem das tocas apetites a que as bagas e os arbustos queimados do gelo não bastam. Um deles vê-me nos meus preparos habituais, de cu alçado a pentear o rio com a peneira no sonho teimoso de encontrar a centelha que me foi prometida em Contrato do Reino e nem mesmo toda a carne que me fugiu dos ossos este Inverno lhe atalhou as ilusões de banquete que a minha pessoa despertou nele. Pobre de mim. Se pareço carnudo é das peles que carrego em cima do pelo para me proteger deste frio que não se vai. Só que o urso não sabe disso. O Inverno não me levou a altura e ainda sou um homem grande.â€

“Não para o urso†disse a mãe, limpando a ferida do ombro com água do balde.

“Não, mulher, nunca para o urso†concordou o pai. “Não era para ele ameaça maior que um veado a molhar as goelas no riacho.â€

“Talvez mais-te-quisesse pelo sabor†disse a mãe.

“Ou por ser fácil de matar, pelo menos, pensou o urso, água na boca ou não.â€

“O pai não é homem fácil†disse Mihalis, e a sua mãe assentiu com um aceno pronunciado, “de matar ou do que quer que seja.â€

“Isso não sou, filho, mas o urso não sabe das nossas coisas assim como nós mal sabemos das dele.â€

O silêncio tomou conta da conversa enquanto os seis fitavam a cabeça de urso. Pela ferida maior viam-se os miolos do bicho. A mandíbula exibia todos os dentes arreganhados. A língua comprida escapava-se para um canto da boca. Estava negra. O pai bebeu um gole e pousou o jarro. Observou os movimentos suaves da mulher de volta dos ferimentos que o combate lhe deixara. Cada lenho uma futura cicatriz que Savedris traria no corpo dali em diante.

“Nunca fiz segredo†disse ele, “que o rio e eu alguma vez tenhamos andado nos melhores termos.â€

“É um avarento†disse Karis sem se conter. Depois levou a mão à boca e olhou o urso com temor.

“Não é culpa do rio se não cumpre o que um homem promete a outro em papel oficial, pequenina†disse o pai com o sorriso escondido nas barbas. “Mas qualquer outra língua de água a norte daqui ou a sul daqui ou a leste daqui ou a oeste daqui de onde me sento e nós seríamos já uma família rica.â€

“Sabemos†disse Ciamis com candura.

“Disse-vos vezes sem conta da minha certeza que este rio tem andado a esconder o brilho de mim. Para vivermos, baixamos árvores mas não somos lenhadores. Vendemos as peles mas não somos caçadores. E se as estações o permitissem nesta maldita floresta, cultivávamos a maçaroca mas porventura seríamos agricultores?â€

“Não†respondeu Mihalis.

“Nunca†juntou-se Elenis da lapeira sobre a qual se sentava, remexendo as cinzas de véspera.

“Este rio fez de mim pequeno e hoje†o pai apontou a cabeça com o jarro, “este quis fazer de mim almoço. Sentem-se de roda e conto-vos como foi que o vosso pai jurou para nunca mais falar mal do rio.â€

“Posso coser-te o ombro, homem? Enquanto contas? Ou preferes esvair-te não vá eu sem querer interromper tamanho relato com as minhas espetadelas?â€

“Faz o que tens a fazer, Ranis. Farei por não te dar a importância que mereces.â€

“Tenho-te igual amor, marido†respondeu a mulher, escolhendo as suas linhas.

Ciamis e Karis inclinaram o corpo sobre a mesa, Elenis achou que o fogo se desmerdava sem a sua ajuda e sentou-se ao lado delas. Ciamis enlaçou um braço no dele. Mihalis permaneceu sentado ao lado do pai e este, certo que tinha a atenção de todos, bebeu mais um trago e começou.

“Tinha as minhas bochechas ao alto, as mesmas que o urso terá ao engano achado polposas, estava de costas e senti os Deuses tocarem-me no ombro pois quando me virei, vi-o. Duas vezes o meu número tinha ele, vindo por trás de mim para aproveitar o estrondo da corrente. Olhei já não sei porquê e pensei que ia ser comido e digerido e feito em merda de urso e então é que nunca mais partiria desta floresta. Foi nisso que pensei, num monte de merda de urso com a minha parecença, não em vocês, meus filhos, ou em ti, minha esposa, que me pareces demasiado regalada com essa agulha, agora que penso nisso.â€

“Cada picada é necessária†garantiu Ranis. Piscou o olho à filha mais nova, que abafou uma risadela com a mão pequena.

“A todos trouxe†continuou o pai, “para este fim do mundo com promessas que também eu não soube cumprir.â€

“Merda de urso†invectivou Elenis a cabeça decepada.

“Merda de urso†ecoou Mihalis.

“Merda de urso†tornou o pai, “porque sou profundamente egoísta nos meus processos de pânico. E orgulhoso. Se me comesse o cabrão, a ver se ao menos o fazia comer também o meu machado e a minha picareta, e ainda bem que tive tempo para jogar mão aos dois, ali perto os tinha deixado sobre o tronco da grande árvore tombada feita ponte através da corrente.â€

“A grande árvore deitada†disse Ciamis.

“De onde jogamos as canas†acrescentou Elenis. O pai acenou.

“Não sou esperto que chegue para medir a distância em passos de urso. Sei que não era já muita entre ele e eu, e ele, como a maioria dos ursos que vi, tinha quatro patas para correr e levantava uma chuva grossa ao apartar o rio vindo a apanhar-me.†Savedris abriu os braços. “Tentei assustá-lo, vozeando e bracejando e fazendo por me fazer maior do que sou.â€

“Tentaste cantar?†A mulher deu mais um nó, fechou mais um trecho de ferida. “Cantei a um, uma vez. Deixou-me estar. Alguns não são avessos a melodias e a poemas.â€

O marido olhou-a com falta de modos.

“Se soubesse alguma canção, mulher minha, tê-la-ia cantado†afiançou num tom avinagrado. “Mas não sei de que serviria com este. Vi-o nos seus olhos que vinha devorado pela fome longa do sono e nem mesmo o trovador do Reino, se é que esse sodomita do Infante tem algum lá pelo paço para entreter a maralha que ele chama de corte, acautelaria o que estava para me calhar em sorte.â€

“Não fales mal do nosso Senhor†disse a mulher.

“Falo, pois, se me apetecer†resmungou o marido. “O que está no jarro e este aqui em cima da mesa fazem-me sentir capaz de tudo.â€

“O nosso Senhor tem espiões por toda a floresta, homem†lembrou Ranis.

“Nesta casa não tem, espero eu†disse Savedris. “E se é o urso que te desassossega, desconfio que não falará.â€

“Como então, pai†disse Ciamis, “veio o urso ter à nossa mesa e o pai a essa cadeira, benditos sejam os Deuses?â€

“Pois o urso aproximou-se de mim mais depressa do que me está a levar contar-vos, sem dúvida por não se ver interrompido a cada passo pela voz da vossa mãe, que tem um arpoar mais implicante que qualquer agulha das dela, firmei o melhor que pude o tacão das botas ao leito do rio e enquanto esperava pela morte certa apercebi-me do facto de estar numa posição de ligeira vantagem.â€

“Benditos sejam os Deuses†disse Karis. O pai ergueu o jarro ao alto e bebeu.

“Quando dei pelo urso, andava a peneirar nas quedas baixas, um pouco acima de onde o rio se aquieta na lagoa funda, junto ao tronco caído. Ele vinha por baixo, o urso, contra a corrente, uma massa de pelo e músculo, embora já os tenha visto mais gordos e rápidos. O degelo ainda não começou com a propriedade devida, mas as neves já se largam dos cimos de Todor Rau e isso talvez me tenha salvo a vida. Este rio que conspirou para manter esta família na penúria fez por atrapalhar os movimentos ao urso à força da sua corrente.â€

“Bendito rio†disse a mãe.

“Sim, já não me ouvirás dizer o avesso. Não me traz ouro mas não é tão mau quanto o tenho pintado, o meu rio.â€

“Eu gosto de fazer as pedras saltar na correnteza†disse Elenis.

“Eu gosto da sua água, no verão, quando tenho sede†disse Karis.

“Eu gosto de pescar nele†disse Mihalis.

“Eu gosto de nadar nele quando ninguém está a ver†disse Ciamis, e a mãe tapou-lhe a boca com uma mão suja de sangue de homem obstinado.

“Bendito rio†disse ela ao marido antes que as sobrancelhas peludas dele se encavalitassem na direcção da mais velha. “Continua, homem.â€


“Por isso…†disse o pai fitando a filha com olhos de conversa prometida sobre outro assunto que não aquele, “na mão esquerda a picareta, lembram-se? E na direita o machado. Mijei as calças a meio mas não fugi. Um homem que foge é o mesmo que morre, neste mundo e no outro. Do mijar pernas abaixo não vem grande mal, desde que não seja prenúncio de correria desvairada. O mijo é quente e lembra-nos a vida. Adoro o mijo! E vocês também deviam adorá-lo.â€

“Lindas coisas ensinas aos teus filhos só porque estiveste em combate com um urso e os Deuses te sorriram desta vez†disse Ranis.

“Se me tivesse posto a correr, quem terias agora para espicaçar o juízo ou a carne?â€

Savedris soltou um resmungo. A mulher calou-se e foi ver da ferida no pescoço. Invocava o emprego duma agulha mais fina. Havia uma assim no seu cesto que estava no colo da mais nova, Karis. O marido rodou os olhos pelos filhos e continuou, juntando a sua voz ao crepitar do borralho que oferecia calor à casa.

“Não fugi. Nem podia, tinha a árvore tombada atrás de mim e não quis ver se era capaz de saltá-la antes que o cabrão me abocanhasse o nadegueiro que trazia debaixo de olho desde que me tinha visto. O urso dobrava o meu tamanho mas metade dele estava dentro do rio. Acima da água, ele abaixo das quedas e eu por cima, não havia muita diferença entre nós. Se, meus filhos, não falarmos na cabeça.†Voltou a indicar o convidado àquela mesa. “Não parece grande coisa agora aqui em cima, mas imaginem-na coroando ombros como rochedos, essa boca a abrir e a fechar em estalos dentados e a rugir e duas patas enormes de cada lado que também sabiam morder e arranhar sozinhas. Se me apanhasse num abraço, a minha cabeça caberia dentro desta boca e depois era só trincar-ma limpinha.â€

“Não†disse Karis, com pavor no rostinho.

O pai enfatizou o que poderia ter acontecido com um aceno silencioso.



continua...

parte 2: http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,17042.0.html
« Última modificação: Junho 24, 2009, 13:14:44 por NunoMiguelLopes » Registado
Goreti Dias
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« Responder #1 em: Maio 28, 2009, 20:07:17 »

Enfatizado ou não, o relato vai bem. Espera-se que a costura do ombro também! Vamos ao que se segue, vale a pena!
Abraço
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Goretidias

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Hoje, o Figas veio aqui, desejar a todos um bem-estar na vida, da melhor maneira vivida.FigasAbraço
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
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Olá para todos!
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Olá para todos!
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Boa feliz noite para todos.
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Bom fim de semana para todos
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Boa noite feliz para todos.
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