Começara a viagem, há muito, muito tempo, há tanto que já não seria capaz de saber com exactidão o dia em que tudo tomara forma. Ouvira falar de uma noite, em 1961, em que um paquete, de seu nome “Santa Maria†fora, por motivos polÃticos, desviado da sua rota. O navio, propriedade da Companhia Colonial de Navegação, segundo apurou muitos anos mais tarde, fora tomado por oposicionistas ao governo salazarista, comandados por Henrique Galvão, em 22 de Janeiro de 1961, tendo acabado por fundear no porto do Recife, no Brasil, em 2 de Fevereiro seguinte, sendo perseguido em mar alto pela Armada Portuguesa e outras esquadras. Nessa noite da tomada, 22 de Janeiro, Linda Carvalho dera entrada de urgência na Maternidade Alfredo da Costa. Quarenta anos mais tarde, Lia, sua filha, iria ela própria, pela primeira vez, tocar o solo do Recife, voando a bordo de um Air Bus 310 da TAP.
Mas retomemos a nossa estória …
No paquete, com 970 pessoas a bordo, vivia-se um clima de terror. Ninguém sabia ao certo o que estava a acontecer, as motivações dos revoltosos e, mais do que isso, o que ali estava a começar. Galvão de Melo, cabecilha do assalto ao paquete, nunca imaginaria que, ao mesmo tempo que decorria a operação a bordo, numa qualquer sala de um qualquer hospital, três pessoas se debatiam em fazer nascer uma criança que, contrariando todas as expectativas, decidira tenazmente abrir os pulmões para a vda, não rodeada de mesinhas caseiras, parteiras de aldeia e caldos de galinha, mas assistida por profissionais, na cidade grande.
A noite havia caÃdo gélida naquele Janeiro de 1961, depois de um dia inteiro em que o Sol teimara em não brilhar. A humidade trespassava os ossos, penetrava nas roupas, gerando em torno dos corpos uma auréola fria e espessa. Linda fora sempre um mulher lutadora e não seria a ameaça de mais uma noite sem dormir suficiente para que se deixasse dominar pelos medos.
As dores iam e vinham, a espaços, envolvendo-lhe os rins num calor avassalador. Lia, ainda dentro do ventre de sua mãe, iniciara a “Viagemâ€. São Sebastião da Pedreira, seria o primeiro ponto no conto da sua vida.
Voltemos a Linda: Os cabelos escuros em desalinho, as gotÃculas minúsculas de suor, na sua base, eram os únicos vestÃgios da luta que estava a travar à quase quarenta e oito horas, com aquele ser. As entranhas revoltas, pungentes de vida impunham-lhe e impunham-se, obrigando a que todos os ritmos da casa parassem.
Primas, tias e comadres, aguardavam na casa de entrada, o choro da criança; na cozinha a água continuava a ferver, em grandes caldeirões, as toalhas brancas do enxoval há muito que haviam sido lavadas, libertas de gomas, esperando agora momento oportuno para serem introduzidas nas panelas, escaldadas.
A parteira, tia e madrinha da parturiente, revezava-se à cabeceira da cama, com as tias velhas. Linda olhava à sua volta, observando o circo, com um misto de tristeza e ansiedade. O luto visitara havia pouco a sua famÃlia, levando-lhe o pai para sempre. Mas não fora só esta figura masculina que perdera nos últimos meses.
O avô, a personagem mais carismática de toda a sua infância, também ele havia partido há pouco mais de um ano atrás, numa manhã de soalheira de Abril. Partira como vivera, em apogeu e pompa, sentado no alto da galera, vestido com o seu melhor gabão, apoiado no bengali de que se não separava nunca. Uma lomba da estrada fora para ele o encontro com o além e, num dos raros momentos em que a Estrada Nacional 10 era atravessada por algo mais do que burros e mulas, António de Carvalho, cruzou a sua vida com um automóvel Ford preto, recém adquirido, de carroçaria reluzente. Fora o brilhar da viatura ou o refulgir dos primeiros raios de Sol, o certo é que os cavalos se assustaram, se empinaram, a galera perdeu o norte, num ápice, cavalos, cavaleiro, bengali e gabão, serpenteavam o asfalto.
Diz quem o viu, que o sangue lhes escorria em fio das narinas – às montadas e ao montador. Dizem ainda que, malgrado o que se passara, António de Carvalho, partira desta Vida com um sorriso rasgado nas feições duras.•
A noite havia-a passado na casa de uma amante, e os primeiros raios de Sol despertara-o para a urgência de voltar ao Casal dos Anjos e da Oliveirinha. As tarefas agrÃcolas não se compadeciam da luxúria, e nisso, António era o ser humano mais exigente.
Preparara a sua filha mais velha para lhe suceder. Na restante prol, cinco ao todo, não reconhecia competência. Mas o destino quisera que mesmo a sua primogénita se afastasse de si, perdida de amores por um homem letrado da cidade. Tantos anos despendidos a fazer dela um macho de comando, a investir na sua acreditação junto dos ranchos de mulheres, a fazer dela a sua melhor obra, tudo perdido a troco de nada.
António havia em 1901 comprado o Casal dos Anjos e quatro anos depois, o Casal da Oliveirinha. Duas belas propriedades que se espraiavam por duas encostas de serra, num declive acentuado, culminando num planalto. Aà havia erguido a sua casa, criado os seis filhos que a vida lhe dera, amado a esposa roliça e ruiva, noite a dentro, com volúpia e mestria, até ao dia em que esta, cansada das traições do marido, lhe trancou para sempre as portas os seu quarto, e o privou em casa própria dos prazeres da carne.
Fora de portas, no milho, nas vinhas, no trigo ou no curral, António exercia sem pudor o direito de pernada, deixando marcas da sua passagem desde as orlas do rio que corria grande alagando as lezÃrias, até à serrania mais próxima, onde os pinheiros mansos, de tão fechados não deixavam ver o chão.
Deste avô, Linda herdara a temperança e o determinismo, com que havia de pontilhar, a ponto pé-de-flor o matiz da sua Vida.
A perda destes dois homens deixara um manto negro na casa. Janeiro reforçara este pendor, de uma forma tão intensa, que nem o cheiro a cera recém aplicada no soalho de madeira, nem os lençóis aureolados a renda, pareciam ser capazes de o romper.
Aguardava-se a chegada deste bisneto de António como se de um Deus se tratasse. A casa grande urgia de risos e correrias. As primeiras perdas já haviam acontecido, com a separação dos filhos, com a venda de bens e haveres. A década de sessenta foi para o Casal dos Anjos e Oliveirinha o começo da derrocada, a pedreira iria reduzir nos anos que se seguiram, uma boa parte dos terrenos a pó e nada…
O episódio ocorrido em nessa noite de 1961, protagonizado por Henrique Galvão, a tomada de assalto ao navio e a declaração de que este era espaço português independente do Governo - com o intuito de chamar a atenção dos media internacionais para a situação polÃtica portuguesa – realmente bem noticiado na imprensa internacional, em Portugal, face a uma informação demasiado controlada, chegou numa versão oficial pouco intensa em relação à dimensão dos acontecimentos. Marcou contudo de forma determinante a hora do nascimento de Lia. Viria a ser, ao longo de muitos anos tabu, do qual pouco se falava, se bem que a população, vivendo uma ditadura, procurava saber mais, interpretava e reinterpretava o que ouvia, do que se falava em voz baixa, à mesa da taberna, entre amigos. Na famÃlia o registo fazia-se mais em torno da fabulação do nome, Maria Santa, que, por momentos, a criança estivera quase a ganhar.
Nesse mesmo mês no norte de Angola desencadeia-se a abertura da primeira frente de guerra em Ãfrica. Alguns repórteres no local registam o que se passa, antevendo-se já um futuro sem hipótese de fuga ao conflito...
Nesse mesmo ano, 1961, o astronauta soviético Iuri Gagarine torna-se o primeiro Homem no espaço, ao ser colocado em órbita, a bordo da nave "Vostok 1".
Na rádio surgem as primeiras notÃcias. Os acontecimentos de 23 de Janeiro de 1961, são relatados na emissora nacional, pela primeira vez, passam escassos minutos da meia-noite.
(continua)
in "Apenas um conto, cerzido ponto por ponto na cadeia do sentidos"©