Antonio
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« em: Fevereiro 09, 2008, 14:23:22 » |
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Outono de 1982. Viviam-se dias agradáveis, soalheiros. Eu trabalhava numa empresa sita em Sobrado, no concelho de Valongo, desde Abril de 1979. Fora criada em 1949, curiosamente o ano do meu nascimento. Em 1980 foi comprada por um dos maiores grupos empresariais privados portugueses mas, ao contrário das expectativas de todos os que nela trabalhavam, continuou financeiramente debilitada. Mais rigorosamente, a situação piorou. Cerca de dois anos depois os ordenados já eram pagos aos soluços. Pressentia-se que o fim estava próximo. Uma das panaceias que a administração usou para tentar evitar o que já era inexorável foi determinar que no chamado sector têxtil, onde quasi só trabalhavam mulheres em dois turnos, se fizesse uma alteração. Os dois grupos de funcionárias laboravam alternadamente, isto é, um deles funcionava das seis à s catorze, o outro das catorze à s vinte e duas. E assim durante uma semana. Passado o fim-de-semana, as operárias trocavam de turno. As que trabalhavam de manhã passavam para a tarde e vice-versa. Este sistema não tinha nenhuma vantagem especial para a empresa mas, como propiciava, de acordo com o contrato colectivo de trabalho, um suplemento salarial de vinte por cento, agradava à s mulheres. Ora a decisão da administração foi no sentido de acabar com essa alternância e, consequentemente, cessava o tal acréscimo no rendimento. É bom de ver que as movimentações começaram logo que a mudança foi anunciada para vigorar a partir de determinada segunda-feira. Dirigentes e delegados sindicais andavam numa roda-viva a travar mais uma luta contra a exploração do patronato. Um plenário foi convocado para as duas horas da tarde e assim, aproveitando a mudança de turno, estariam lá as mulheres todas que eram umas centenas. Antes de ir dar uma espreitadela ao local da reunião eu, que na altura também era chefe de uma parte das colaboradoras abrangidas pela nova regra, passei pelos salões onde as máquinas estavam quasi todas paradas por ausência das operadoras. E reparei que uma tal Margarida, jovem, anafada, loira de cabelo curto, mal-educada, regateira e delegada sindical, por toda a gente conhecida por Mamuda, estava junto de uma operária. Achei a situação estranha e aproximei-me. Constatei que a operadora estava a chorar devido à s ameaças que a Mamuda lhe fazia por ela não ir ao plenário e se manter com a máquina a trabalhar. Irritado com a situação, e depois de ter feito algumas perguntas para me certificar que não estava a interpretar mal o que acontecia, disse para a loira: - Se esta sua colega pretende continuar a trabalhar, a senhora não tem o direito de a estar a importunar. Portanto, saia já daqui! A delegada sindical ainda ripostou (pareceu-me ouvir qualquer coisa como fascista) mas repeti a ordem em tom mais altissonante e ela lá foi devagarinho para outro lado. Claro que fui atrás dela para evitar que repetisse a cena com mais duas ou três colegas que tinham resolvido continuar a trabalhar. Daqui a pouco já vão perceber esta referência especial à Mamuda.• E chegamos à tal segunda-feira em que a nova regra iria começar a funcionar. Como se previam problemas, o director fabril, Eng. Veiga, eu, os meus colegas Jacinto (de que já falei algumas vezes nos meus textos, embora na qualidade de amigo) e Lopes, bem como o Miranda, chefe do Pessoal, decidimos aparecer nas instalações fabris antes das seis. E as mulheres compareceram ao trabalho. Mas a maioria eram do turno que deveria vir só de tarde. As que acataram a nova regra eram poucas. Perante a situação, o director decidiu deixar que as coisas continuassem assim e tentar falar com alguém da administração, mais tarde, para combinar a forma de combater a falta de cumprimento do estipulado. Refira-se que a sede administrativa ficava no Porto e não em Sobrado. Por volta das dez da manhã já o Eng. Veiga tinha tentado contactar alguns administradores, mas sem sucesso. E então, algumas operárias, lideradas pela Guida Mamuda, deixaram o local de trabalho, entraram na zona de serviços, subiram as escadas de acesso ao gabinete do director e foram falar com ele no sentido de ser revogada a directiva. Claro que o Veiga não tinha poderes para tal e disse isso à s empregadas. Estas, melhor dizendo, a Mamuda, afirmou então que não iriam para o trabalho sem a anulação da ordem. SaÃram do gabinete e postaram-se na escadaria que ficava uns trinta metros adiante. Quando, passados alguns minutos o director veio indagar qual a causa do barulho que continuava a ouvir, mas ainda mais ampliado, deparou já com umas dezenas de funcionárias à s quais se dirigiu. Foi recebido com apupos e palavras de ordem (como é habitual nestes casos) e com a intimação de voltar para o gabinete e só sair de lá quando o problema estivesse resolvido. O director fabril telefonou então para o Porto a informar que estava sequestrado e tinha de falar com algum administrador. Mas de qualquer deles, nem rasto… Depois ligou para o Miranda e para os três chefes de produção (eu, o Jacinto e o Lopes) a contar o que se passara. E fomo-nos mantendo em contacto telefónico. Administradores, nada! E o grupo de mulheres liderado pela fogosa peituda continuava na escadaria. Antes de ir almoçar, resolvi ir ver como estava o engenheiro director. Passei pelo grupo de mulheres, falei com o meu chefe, saà e, quando ia atravessar o grupo contestatário, a Mamuda avançou para mim, empurrou o seu bem almofadado peito contra o meu e gritou: - Não passa! Não passa! E logo as outras num afinado coro: - Não passa! Não passa! E regressei ao gabinete donde tinha acabado de sair. Estava sequestrado. Não fiquei atrapalhado. Numa primeira fase até achei certa graça. Sempre gostei de situações incomuns. Telefonamos aos colegas para não irem lá acima sob pena de também ficarem retidos. E o dia foi passando. Cigarros, estratégias, conversa, tácticas, telefonemas. Nada de comida nem de administradores. Só autorização para ir fazer xixi. Telefonei à minha mulher que estava grávida de oito meses. Contei-lhe o que se passava. Ficou aflita, como seria normal, mas fui-lhe dizendo que não havia perigo nenhum e que mais isto e mais aquilo; não queria que se incomodasse excessivamente. A certa altura da tarde, entrou o Miranda. Não aguentava sem nos vir ver e lá ficou detido. Três! Com o passar das horas, a fome e as palavras de ordem que eram gritadas de vez em quando, as preocupações foram aumentando. E se aquela horda entrasse por ali dentro e nos agredisse? Cheguei a pensar que ainda seria defenestrado como o Miguel de Vasconcelos. Nenhum administrador apareceu na sede nesse dia. Estávamos furiosos com eles. A decisão fora de sua responsabilidade e agora deixavam o seu representante na fábrica sem protecção nenhuma. Ainda chamamos a GNR mas, como de costume, não adiantou nada. A tarde aproximava-se do fim. Era preciso fazer qualquer coisa. E o Veiga foi chamar uma delegação de duas ou três trabalhadoras para vir falar com ele. Vieram umas trinta para dentro do gabinete. Tive algum medo do que poderia acontecer. Já não me lembro do que foi dito. Lembro-me que, por volta das dez da noite, se chegou a um acordo. Acho que isso aconteceu porque as mulheres acabaram por perceber que o Veiga não tinha poderes para tomar a decisão que pretendiam e porque elas próprias se queriam ir embora. E assim acabou o sequestro. Telefonei imediatamente para casa. Aliás, durante todo esse perÃodo, várias vezes o fiz para sossegar a mulher e outros familiares que, entretanto, já tinham sabido da minha desconfortável situação. Para vos falar francamente, acho que fiquei preso só porque a Guida Mamuda se quis vingar da minha atitude no salão de máquinas e que intencionalmente narrei mais acima. Nos dias seguintes, progressivamente, as trabalhadoras começaram a cumprir a determinação da administração que na terça-feira de manhã, finalmente, deu sinal de si. Os salários continuaram a chegar cada vez mais atrasados. Penso que essa foi umas das razões para desmotivar a luta das empregadas. Começaram a perceber que aquela empresa que dava sustento a tanta famÃlia (em muitos casos a famÃlias inteiras; pai, mãe e filhos) estava moribunda. Lembro-me que um dia uma jovem operária me disse: - Sabe? Nós nascemos para ser pobres. Menos de um mês depois nasceu o meu filho. Cerca de mês e meio mais tarde mudei para outra empresa. Ainda nela trabalho e, ironia das ironias, foi também comprada pelo mesmo grupo empresarial. Mas desta vez a coisa está a correr bem! Uff… Em Janeiro de 1983 as máquinas da CIFA – Companhia Industrial de Fibras Artificiais, SA, pararam. Para sempre.
(escrito em 25 de Junho de 2005)
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