gdec2001
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« em: Março 18, 2010, 21:59:20 » |
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PREFÃCIO DE INTENÇÃO EPISTEMOLóGICA 1. _ A Ciência JurÃdica: Proposta de noção. Seu objecto: O direito.
A Ciência JurÃdica é o conjunto sistematizado de estudos e conhecimentos acerca da especÃfica estrutura social (1) cuja função é a tutela de determinados tipos de interesses humanos através da coerção organizada e exercida por um poder de classe que, nos limites em que se acha constituÃdo, age como soberano (2). Na base da estrutura jurÃdica situam-se as relações económicas-sociais. No topo, um sistema de concepções -uma super-estrutura ideológica - que são a transposição da matéria social para o nÃvel da consciência social. Esta ideologia, como qualquer outra, tende a devolver-se à sociedade material realizando, na história, a sua concepção da realidade. Os interesses humanos - objectos da tutela - estão
(1) A estrutura social em causa é o Direito. (2) O poder de classe de que falo é o Estado. (3) A realização de um juÃzo de ser é, em contrapartida, mediada não por uma norma mas sim por uma regra, um comando hipotético ou seja um preceito de arte.
presentes no todo da estrutura jurÃdica; na base, como matéria das relações sociais e na super-estrutura, como ideia, sob a forma de juÃzos de valor. O juÃzo de valor, enquanto componente de uma ideologia, não é, cabe adverti-lo, o simples conhecimento do interesse na sua existência objectiva, mas a assumpção do interesse, a sua subjectivação. Daà que só os interesses assumidos pela entidade tuteladora - a classe reinante - possam ser objecto da tutela. Ideologia é pois igual a consciência de classe. A objectivação da ideologia - a sua devolução à realidade material- porque realização de juÃzos de valor, é, necessariamente, normativa (3). A norma, nexo entre a ideologia jurÃdica e a sua base material, mediadora da acção que a super-estrutura exerce na realidade empÃrica, compartilha assim o seu modo de ser ideológico com o da matéria social a que se refere: é um ser cultural. Torna-se por isso objecto privilegiado da ciência jurÃdica. Na verdade a norma, sendo, por um lado, valor mas objectivado - comando - permite tomá-lo -ao valor- como objecto de conhecimento e, sendo, por outro lado, matéria mas referida, nominada, ou seja num primeiro grau de conhecimento, permite um conhecimento teorético ou de segunda - ou ulterior - intenção.
2. - A Ciência JurÃdica é possÃvel em diversos planos de intenção e nÃveis de abstracção. No plano da intenção devemos distinguir:
2.1. - Os estudos e conhecimentos que se ocupam de Direito' como sendo um objecto especÃfico que é necessário classificar dentro da ordem geral das realidades afins e em relação ao qual importa determinar a função que cumpre nos diversos contextos a que pode ser referido. Teremos assim, por exemplo: uma antropologia do Direito, urna história ou uma sociologia do Direito, etc.
2.2. - Os estudos que se propõem o Direito enquanto problema prático a resolver, ou seja, que se ocupam dos problemas suscitados pela «vida jurÃdica», pelo Direito no acto de se realizar. Neste plano de intenção o Direito não é propriamente o objecto do estudo mas um dado. O objecto será o caso - problema - jurÃdico, real ou hipotético, a resolver. Este é o plano dos juristas, o pensamento jurÃdico, um pensamento de Direito e não sobre o Direito. Resta saber se tal pensamento pode ser considerado uma ciência (da prática jurÃdica) ou se não é apenas um pensamento de intenção (método?) cientÃfica.
3. - No que respeita ao nÃvel de abstracção que se propõe alcançar poderemos, talvez, considerar na ciência jurÃdica três planos fundamentais:
3.1. - O da análise exegética, lógico-dedutiva, através da qual apreendemos o que já é conhecimento, realidade mentada ou cultural; por ex.: o que comandam as normas ou qual o modelo formal de uma relação jurÃdica abstractamente nelas regulamentada.
3.2. - O da formulação dos conceitos através dos quais ordenamos um conjunto de fenómenos significantes, já nomeados, num sistema unitário de significações, sistema cuja coerência interna assim nos é dado compreender - é o nÃvel das teorias.
3.3. - Finalmente poderemos considerar a formulação dos juÃzos - ou hipóteses - mais gerais e englobantes sobre o Direito, na base dos conhecimentos obtidos nos estudos jurÃdicos e sobre o jurÃdico nos seus diversos planos de intenção e nÃveis de abstracção e também a partir de uma posição sobre o sentido geral da vida e das sociedades humanas. É o nÃvel filosófico.
4. - Do método em Geral. A Ciência JurÃdica é, na actualidade, um empreendimento colectivo. Os estudos aos diferentes nÃveis de intenção e abstracção só podem ser considerados como tarefas parcelares daquele mesmo empreendimento. Os resultados obtidos dependem da interacção dialéctica que entre tais estudos se estabelece. Assim por ex.: a conceitualização sistematizada a partir das normas, e mesmo a validade de tal forma de conhecer o Direito, é, desde o inÃcio, determinada pelo estatuto ontológico que o estudioso fixa ao direito - ideia objectivada (?) simples fenómeno empÃrico no acto de acontecer (?) realidade histórica plasmada em juÃzos de valor (?). Por outro lado a validade dos conceitos obtidos depende de se ter tomado em canta e se ter operado conjuntamente com os elementos funcionais que só a história e a sociologia podem fornecer. O pressupor da função é condição indispensável do conhecimento de uma estrutura a realizar-se, do movimento que é o modo de ser da sua existência real. A interacção dialéctica de todas as formas e nÃveis de conhecimento de Direito e sobre o Direito, multiplica-se infinitamente pois é necessário não considerar a ciência jurÃdica isolada de todas as outras formas de conhecimento. Da mesma maneira se deve ver a relação entre a ciência jurÃdica com a prática que ela vai, por sua vez, modificar. E isto, quer essa prática seja a realização da ciência do Direito quer seja a realização do Direito ele mesmo.
5. - O objecto deste trabalho: Ciência prática e método. O pensamento jurÃdico, como ciência prática, segue metodologicamente o movimento da própria formação e realização do Direito. O juÃzo de valor jurÃdico, construÃdo sobre a matéria dos interesses humanos concretos que se digladiam na sociedade real, nega esses interesses transmutando-os em ideia social, abstractizando-os e generalizando-os. A norma, por sua vez, nega o juÃzo realizando-o na vida material. Esta negação da negação é um regresso..,progresso dialéctico pois a realização do Direito é uma tutela de interesses concretos mas no plano mais elevado da assimilação pela via genérica. Como, porém, o juÃzo de valor não é pura ideia mas ideologia - existente na contingência da realidade histórica - a sua realização não pode impor-se com a força da necessidade, antes tem necessidade da força para se impor. Força que, para a classe que a actua, é uma exigência da própria existência - a classe existe quando objectiva a sua consciência de classe - e para a classe que a sofre é uma negação que exige ser superada - e é - por uma nova ideologia, a qual, no esforço de realizar-se, faz o movimento da história. O jurista puro seria um instrumento da classe titular do Direito para a tarefa da sua realização formal (1) e também da sua realização material objectiva (2) - a realização subjectiva dos valores é moral-. No processo da formação do direito, ou seja da sua realização formal, caber-lhe-ia organizar os materiais: objectivar os juÃzos de valor sob a forma de proposições normativas, deduzindo; referi-los a matéria dos interesses que tipifica, induzindo. No processo da realização material executaria operações análogas: «subir» do caso para a norma - subsumir -e «descer» da norma para o caso- interpretar; subida e descida que um mesmo processo comporta muitas vezes e que é, por isso, mais propriamente, um movimento de vai-vem. Porém nenhum destes processos lógicos permite, por si só, realizar o que quer que seja - são processos de conhecer e não de realizar. Na verdade a ideia, sendo formada a partir da matéria
(1) É o papel do jurista legislador. (2) É o papel do jurista juiz, do jurista advogado, etc.
em perpétuo movimento - e o devir da matéria social é particularmente fluÃdo - não 'Pode reflectir um ser que já não é no momento em que é 'Pensado; reflecte antes um vir a ser, um tornar-se. Ora, se é certo que todo o tornar-se se nos apresenta, à posteriori, como determinado, à priori - e portanto na ideia - já assim não é, antes de mais porque toda a ideia é abstracção, mutilação da realidade material. Esta apresenta-se-nos pois como um vir a ser indeterminado, um feixe de probabilidades. Actuar é intervir para realizar uma das possibilidades de ser - é assim verdadeiro que todo o real é racional mas não é verdade que todo o racional seja real; venha a ser realizado. Desta maneira uma actividade, como é a prática jurÃdica, jamais se pode reduzir a qualquer forma de processo cognitivo dada a relativa indeterminação de todos os conceitos. Assim o jurista puro é uma pura abstracção. O jurista real é ele mesmo homem, membro de uma sociedade e de uma classe e por isso chamado a constituir ele próprio o Direito nos limites da indeterminação dos conceitos com que trabalha. Daà a sua responsabilidade.
Geraldes de Carvalho Do meu livro "Introdução ao método de aplicação cientÃfica do Direito" Foi também a minha contribuição para o Congresso de Ciência JurÃdica em Haia-1977
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