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Autor Tópico: Mr. Dalloway  (Lida 2011 vezes)
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Djabal
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« em: Abril 15, 2010, 10:48:35 »

Mudou para Ilha Bela. Queria viver feito uma ilha. Rompeu quase todos os laços. Manteve apenas a visita aos amigos da mesa na casa de Artur. Passou a viver a própria vida. Passa por todos que o cercam sem ouvir nada, sem falar nada, apesar do movimento dos músculos da face que garante não ser deliberado: um reflexo instantâneo e automático, não significa nada, apenas condicionamento. Toda a intervenção na vida alheia se frustrara. Toda a intervenção da vida alheia também. Restam danos irreversíveis. Apresenta-se como ectoplasma perambulante, um pedaço de carne, separado dos demais.

Memórias.
Trabalhou em uma fábrica de papel higiênico em Gotemburgo por um ano. Solitário e entediado. Um trabalho mecânico servindo como meditação. Adquiriu o cacoete de coçar sempre o mesmo local, no peito, cantando sempre a mesma canção. Deixou aqui sua mulher. Um amigo da faculdade, Saul, se prontificou para ajudar no que fosse necessário. Ele, a princípio, não confiava nele. Um judeu com um sorriso constante no rosto, sem as pernas: um riso com tronco e braços. Pobre e conversador. Ria do quê? Um ótimo papo. Tita, ao contrário, não gostava de conversar, além de fazer o contrário do que falava. Se indagada, respondia sempre com um clichê, escudo de palavras para defendê-la do ataque. Gostava de cozinhar. Tatuou no antebraço esquerdo as imagens que ensinam o uso do fachi. No direito, a imagem de uma lagosta. E, nas costas, uma balançante Salomé, que ela fazia questão de mostrar, orgulhosa, requebrando-a com o corpo. Adorava dinheiro e sexo. Não quero casar com a miséria, e não sou amiga de ninguém. Oscilava entre o ódio e o desejo. Dizia que só o tratava mal porque o amava. Depois de algum tempo, ficou grávida. Saul, o provável pai da criança, o alertara quando ele estava em Bruxelas, visitando seus parentes; eles noticiaram que seu pai havia cometido suicídio. Professor de uma escola de primeiro grau, temperamento afável, muito tímido, foi alvo da indisciplina dos meninos até o limite do suportável. Ele se desesperara por não conseguir um denominador comum entre os alunos que não fosse a violência. A qualidade de vida por aqui piorou bastante, disseram os parentes. Estavam assolados pelos negros da Ãfrica e pelos chineses que tomaram conta da praça principal, e, como ela, nosso comércio fracassando aos poucos. Após solucionarmos o nosso problema entre os flamengos e os valões, pensávamos em desfrutar a vida.  O pai não deixou nada escrito. Apenas decidiu.

Alimentos.
Ali mesmo Zé da Ilha comprava dos pescadores o nosso almoço. Geralmente tainha, marimbá, parati guaçu, vermelho, trazidos pela rede de fundeio, algum camarão, lambe-lambe e, às vezes, um polvo solitário. Mistura-os com bananas verdes, tempero, pirão, e pronto. “Estive em Angola também, lá fiz amizade com russos e cubanos, os donos do lugar. Fui convidado para um passeio de helicóptero, que percorreria a região norte, fazendo o reconhecimento da fronteira com a República do Congo. O passeio foi tenso. Além das pesadas nuvens, o auxiliar angolano não conhecia qualquer rudimento de pilotagem ou aeronaves, provocando uma raiva incontida do russo. Todos aqui são assim. A única palavra em português que aprendi para sobreviver é: filhodaputa. Chegamos a Dundo. No local do mapa onde existia uma colina, apenas um imenso buraco, com milhares de pessoas andando, subindo e descendo, armados com pás, picaretas, e balas. O morro desaparecera. Os congoleses descobriram lá uma mina de diamantes e cavaram intensa e rapidamente. Contou que Angola contratava milícias para acompanhar seus comboios. Mesmo assim, nenhum chegou; tampouco voltou qualquer miliciano. O mesmo horror ainda imperava por lá. Gontcharov foi também consultor especial do governo russo nos Bálcãs. E de lá trouxe esta história: ‘Sentado em um barranco próximo de Naissos (Nis), entre a Sérvia e a Bósnia, de costas para uma ampla casa rústica típica, rebocada a partir da metade de um artificial branco, diante da qual, sob a sombra das árvores, via-se a enorme mesa de refeição com dezenas de cadeiras, madeira maciça, coberta de linhos, vinhos, cristais, pratas e louça, tortas gibanica, burek, assados, Kobe beef, T-bones, samovar, joelhos de porco e repolho, fatuches, falafel e kebabs, narguilés. Cervejas, uísques, nalifka. Nela, os convidados, descobriram suas cabeças dos tarbuches, ushankas, barretes, turbantes, castores e coelhos, e discutiam, animados, os preços das mercadorias utilizadas lá embaixo. Os meus sentidos estavam divididos. A audição, às minhas costas, das risadas; a visão absorvida naquele vale extenso, ao sopé das montanhas, formando um palco, onde os atores de atracavam com as armas disponíveis. Um vai e vem de pessoas ora agachadas e protegidas, ora em pé correndo, atirando sem cessar, ocupando posições. Para logo depois voltar, sob fogo cerrado do inimigo em maior número. De cima se podia ver um pelotão atravessando o rio logo adiante, fazendo a outra perna da pinça que aniquilaria a todos à baioneta calada. Os corpos repousando no chão, disformes, em posições desnaturais. E do conflito inicial, restou um ou outro de um lado, e uma pequena maioria do outro. Apenas se pode dizer que houve muito medo e coragem de todos, e sorte para uns. É só. Ao chegar a cal, iniciou-se a cova coletiva e a minha atenção se desviou para o tato. Desde não sei quando, estava com a mão sobre o pescoço de um cão. Fugitivo, correndo e escalando aquela elevação, se postou ao meu lado, olhando como eu, e se aconchegou. Havia uma conexão entre nós. Fome? O aroma que vinha dali de trás, foi o laço. E fomos comer.’â€


Cabo Horn.
Aqui posso desfrutar dos meus sentidos. Esquecer os raciocínios. O sol energiza-os todos. A visão fica mais apurada, é sempre surpreendida. O paladar é muito melhor. O tato tem oportunidades, texturas, que jamais teve na cidade. A audição remete ao tempo em que ainda éramos caçadores. E o olfato, que era alimentado pelos perfumes industriais e de comida, agora respira mar e montanha. No mais, estava infestado pelo esgoto que a cidade acumula e oferece. E o melhor: adquiri o direito de contradizer-me. Este é Aécio Pym. Um navegador que conheci por aqui. Ele cometeu a façanha solitária de dobrar o cabo Horn pilotando um barco de sete metros. Fiquei animado com a descrição e com os efeitos da viagem sobre ele; da beleza da amizade entre os pinguins e os albatrozes e da simetria entre seus ninhos. Tentei tempos atrás fazer a rota de Fernão de Magalhães e não consegui. O caminho é cheio de becos sem saída, exigindo do navegador uma resistência sobre humana. O risco de você se arrebentar contra os recifes é tão real que meu barco ficou imprestável. A nova rota fica mais adiante, na divisa entre o Atlântico e o Pacífico. Os inimigos serão outros: as correntes, o tempo, o vento. Eu conheci a região através de histórias de marinheiros.  Penso que estou melhor, aqui à beira-mar, vazio. Apesar dos vários corpos seminus, apesar do sol, dos instintos, consegui refugar.  A lembrança que me persegue: o desfile de modas que as meninas angolanas fizeram quando da nossa visita. Reuniram-se em doze ou quinze, não me lembro, e nos mostraram todos os padrões dos tecidos angolanos. A vila é toda feita de pequenas casas cobertas por colmos, com formato de ogivas, cercando a praça central de terra batida; em cada uma delas, há um odre de barro pendurado no alto da vara, chamando a atenção, enquanto as esperávamos. Colocamos nossa comida ali, para proteção contra as formigas. As meninas eram muito novas, vestidas com as saias longas, as cores muito fortes e contrastantes; belas, com os seios à mostra.

O retorno.
Saí em direção ao sul. Tive o horizonte, as montanhas e o céu por companheiros até chegar ao porto final. Ali, o céu e a terra se fundiram e tudo ficou azul, ondeante, ameaçador. Deixei Aécio em Ushuaia e segui viagem para fazer o mesmo roteiro. Não consegui. Submergi. Fui salvo pela guarda costeira chilena. Perdi o barco dele. Devolverei um novo. No meu peito, formou-se uma ferida e todo dia sai um pouco de seiva, que eu seco com uma gaze branca.

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Goreti Dias
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« Responder #1 em: Junho 06, 2010, 20:22:19 »

Óptimas descrições. Perfeito ritmo narrativo.
Abraço
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Goretidias

 Todos os textos registados no IGAC sob o número: 358/2009 e 4659/2010
Oswaldo Eurico Rodrigues
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Amo a Literatura e as artes.


« Responder #2 em: Junho 07, 2010, 14:10:08 »

Interessantíssimo, Djabal.
Grande texto.

Um abraço
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Oswaldo Eurico Rodrigues


Escrevo também nos sites Recanto das Letras (www.recantodasletras.com.br)
Tere Tavares
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« Responder #3 em: Junho 09, 2010, 14:15:06 »

Djabal,
O laço que acredito não se rompe é aquele impresso no dna, remoto e rememorável, reconhecível; como denota essa frase "E o olfato, que era alimentado pelos perfumes industriais e de comida, agora respira mar e montanha".

Abraço fraterno
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Hoje, o Figas veio aqui, desejar a todos um bem-estar na vida, da melhor maneira vivida.FigasAbraço
Novembro 30, 2023, 09:31:54
Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
Março 17, 2021, 15:04:15
Boa tarde a todos.
Março 16, 2021, 12:35:25
Olá para todos!
Março 13, 2021, 17:52:36
Olá para todos!
Março 10, 2021, 20:33:13
Boa feliz noite para todos.
Março 05, 2021, 20:17:07
Bom fim de semana para todos
Março 04, 2021, 20:58:41
Boa quinta para todos.
Março 03, 2021, 19:28:19
Boa noite para todos.
Março 02, 2021, 20:10:50
Boa noite feliz para todos.
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