Mel de Carvalho
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« em: Fevereiro 16, 2010, 17:40:52 » |
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Desfazia-a lentamente, os dedos longos por entre os fios entrelaçados. A humidade colada à pele, gota a gota, neblina pousada sobre os ombros nus. E ele, metade de si. Tiara, diadema... A casa é onde o coração se esconde..., barro, ninho, ramo ou árvore. Amarrava-se. Deliberada deliberadamente deixava que lhe recobrisse a nudez agora exposta. A toalha branca, de boa felpa, em que, entre uma divisão e outra, se envolvia (gostava-a ligeiramente áspera, sem amaciador) estava agora, caÃda aos pés e as palavras
O meu António nunca me viu o comprimento da trança. Nunca…
Sentia o frio da pedra colado às nádegas ainda por moldar. Juraria que, por tantas tardes ali, por tantas horas a fio, no porfiar de agulhas e de farpas, camisolas tecidas e fios tirados no que havia de ser toalhas sob a broa, por tempos intermináveis, até que lá longe, na beira-rio, a buzina das fábricas da descasca do arroz soltasse todos os reclusos, um a um, seriam planas. Espalmadas e secas como o bacalhau que o Heitor cortava, no ranger de dentes, com precisão cirúrgica. Mas não, os quadris fartos de diva de Orleães... Igual àquela que, na galeria, a olhava, persistente. A mão a amparar a queda, o rosto que, em planos contundentes, sabiam caminhos das sarças, a rasgar intentos e vontades...
São quantas as postas, D. Joana? Ora, bem se vê, tantas quantos semos lá por casa E tem vossemecê cá a famelga que anda a labutar lá nas Franças, vá-se lá de saber?, não dei por as ver chegar…mas também, se bem pergunto, porque se não se acostuma a senhora de os ir de acompanhar e largar por cá a sua criação e as hortênsias? À pergunta, meia resposta, Tenho, sim senhor, todas as filhas, bem casadas por lá nas Franças de Paris, com quem não sabe da pronúncia da nossa terra, e também o Senhor António, que, desta vez, como vieram de carrinha emprestada, mo trouxeram, a minha Rosinda e a minha HercÃlia. Por via de acertarmos umas papeladas… E adiantava uns negócios, umas máquinas que ele por lá há-de comprar, na troca da venda dos palheiros aqui que não me servem de nada - agora só tenho as pitas, por mor dos ovos -, venda dos terrenos, bem se vê… São nove as postas, então? … tem três netos D. Salomé? … P’ra orgulho dos meus olhos, que a terra há-de comer… quero-as altas, bem amanhadas...
Menina, onde estás com a cabeça? Bagos de romã, o ponto: na primeira volta, já te disse: a 1ª malha tece, a 2ª malha passa e dá laçada e, a segunda volta, do avesso, trabalhas sempre em liga. Presta atento, que não me ocorre ensinar a cabeças de vento: na 1ª malha tece e a 2ª faz-se junto com a laçada…
O meu António nunca me viu a trança, comadre Felismina, disso lhe garanto. Ora vamos lá a ver da pouca vergonha. Dizem que nas Franças as mulheres se despem nuas em pelo no quarto com os maridos. Se isso tem sentido, diga-me lá, a comadre ou vossemecê, amiga Quitéria? O seu homem, que Deus tenha em santo sossego, que se escafodeu, com perdão da palavra, lá nas Ãfricas, algum dia lhe viu mais que a fralda da camisa? E de seguida, como que balançando o verbo, o seu Miguel nasceu de sete meses mal medidos não foi? E que grande moçoilo, bem’zó Deus…, nem cabia nas camisas que a senhora sua mãe bordou, teria mais de cinco quilos a criança… E logo, não te diz respeito a conversa, ouviste? Mostra lá o trabalho… desmancha… desmancha… na 1ª malha tece e a 2ª faz-se junto com a laçada, não foi como te ensinei? agora o meu António chegou, está na cidade por via de aprontar a venda dos palheiros… quer saber, ó comadre, que o homem queria dormir no meu quarto? E ainda mais que as filhas no ano passado contrataram a luz eléctrica… havia de ter de ver… desmanchar a trança ali, tão claro como o dia no campo… mostra. Agora sim, passa à 3ª volta… na 1ª malha passas e dás laçada, na 2º malha teces Bagos de romã, ...como cerejas as conversas, valhó Deus, que se faz tarde, o bacalhau é de forno, com azeite de meu governo. Pela barriga se guarda um homem, ó comadre… de maus intentos, bem se vê, que, de bandulho cheio, nem se alevantam do assento…
O meu homem era de pouca comida, uma malga de caldo à noite e pouco mais, aventurava-se Felismina, o sol poente a repousar-lhe na cambraia da camisa bordada a cheio e sombra, a noite inesquecida, perpétua, nas pontas da trança sob o lenço, e este, amarrado com duas pontas no alto da cabeça. Rubra, aqui e ali num matiz de cobre e estanho. O corpete atado langoroso contrário à medida dos anos. De quando em quando, soltava acordes de uma cantiga... De quando era moiça nos campos, ó comadre, e por lá conheci o seu irmão e meu homme… Vossemecê era fresca… ora deixe-me de estar calada, que não é a hora nem a ocasião se apronta útil. A buzina tocava. Salomé guardava a malha na canastrinha, com um até amanhã, tia Felismina, tia Joana, D. Antónia … Vai com Deus, amanhã não venhas, que tenho de ir à cidade, com o meu António, as comadres sabem, a vendas dos terrenos…
Salomé seguia num passo de quem da vida era ainda pó, barro por moldar; seguia o vento da tarde, rumo ao lar… Mais tarde “Lar é onde os objectos têm vida própria e as paredes nos contam histórias†(1) Cada sombra lhas contaria. Os linhos, as rendas, as malhas de que fugia. O arame farpado; e o monstro do Lago Ness que ouvia, do antes, réptil marinho, cobarde forma de serpente…
Desmanchava-a lentamente, desfiapando-a entre os dedos. Fúlgida. O espelho embaciado, e a palavra “para te acolher†...para te acolher... Tomava por fim conta do seu corpo, algures moldado por um oleiro do pó, barro original. Tomava-se para se poder dar, na plenitude da trança que desmanchava, rubra, a tocar as ancas, redondas, carnudas, Enquanto desmesuradamente, à beira de ser água, um dia [a Tarde se fez Noite, o Sol, bola incandescente, tombou rotundo no palco uterino do Mar.],
E de novo era manhã,
O cheiro a coco, o gel de banho colado a si, o ritual a que se dava, sem pressa e no vagar de ser instinto - agora os dedos a penetrar o verde do pote de gengibre, mouse hidratante que espalhava num cerimonial de mÃmicas e de afectos O pecado mora ao lado, a lezÃria de fenos expostos, doirados no calor de um sol que vinha nascido a norte e se desdobrava em si
[Tu chegaste, aragem, manto de linho poroso, complexo composto de milhões de minúsculas bocas]
O lago Ness.O medo. O negro.O linho, a flor, a tarte de gengibre, a receita antiga a coberto dos bagos de romãs e, ela, sob as rendas, que vestia, uma a uma, peça a peça, tão a seu gosto, tanto dele, oleiro, obreiro, sal e sol, sabor de dar e receber Igual. O sabor da casa, a busca do espaço, o abraço. Visceral. O lar, instante iniciático em que [a planÃcie se elevou em arco, ondulou em searas de brilho luz e som. E a Noite nasceu em Dia. Explodiu em cor e no cantar da cotovia.] Perdurado, doce… nela, a arte, o artefacto. A tela… parede, espelho ou vitral em que se projecta Salomé, “o lar é onde cheira a bolos, a canela, a caramelo†(2) E onde a outra, a que desconhecida até ai, se projectava invicta a clamar no verbo, “Lar é onde o coração habita… meu amorâ€
Desmanchava a trança enquanto a jugular se enchia pulsante de um canto de pássaros do paraÃso, e as mãos, inquietas, teciam todas as malhas contingentes, sobre folhas despidas de rosas bravas, rosas brancas, num contar de contas, ábaco, de estrelas do mar - diziam-nas acéfalas, pouco importava -, e os lábios entreabertos aspiravam os beijos e rezavam a bênção se ser mulher, e de lhe poder dar o espaço do seu ventre - avé-maria. Avé!
Eram os tempos em que, na manhã dos campos, rés à s ilhoas, nos mouchões, corriam livres os potros, enquanto nua, se despia da pele que antes a cobria, e, em glória a um Deus Maior, a quem cantava loas, sabia apenas da coralina cor das suas águas, metáfora progressiva de um caudal, gota rio e logo mar, oceânica forma de ser mulher em braços, em entrega integra e fatal, e de, asseverar, com ele ter aprendido a desmanchar sem medo a trança, a soltar cabelos fogo, e os movimentos futuros dos quadris sem cilhas, ao jurar saber a lÃngua eterna dos bichos, das falhas cósmicas, de todos os pontos cardeais, dos sentidos invertidos em cadernais, do relincho das roldanas subidas em noras onde a água chora e ri, indicando o lugar exacto onde se encontram os ninhos, e neles, os pintalgados ovos dos passarinhos;
De alcatruzes compassados à vida, deixava-se vestir na luz de sua presença, ela a cigarra travestida de formiga. Ou ambas, numa só, e o seu nome fosse firme prenúncio de justiça salomónica: Salomé.
Desmanchava a trança, olhava-se em espelho. Nem sempre jovem nem sempre bela e no entanto Ela, Salomé, à beira de ser, seria. E nada demais importava ou importaria senão a voz do vento e os cabelos, soltos, a moldar o rosto ao tempo...
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*** Citações 1 e 2, in Rosa Lobato de Faria, O Sétimo Véu. Restantes citações do poema da autora, "Para te acolher"
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