Há quanto tempo me conhece menino Timóteo? Há quanto tempo? Não responde? Não sabe, não é verdade? Nos seus saberes não cabe a data em que cheguei a esta casa, nem a forma como aqui fui ficando, dia após dia, semana após semana, mês… anos, décadas … meio século quase. É o que lhe digo, menino Timóteo, meio século…
Cheguei num dia de tempestade
ah, é verdade, o menino sempre fugiu das tempestades, sempre teve pavor dos relâmpagos, dos trovões … digo-lhe agora que a voz se me soltou, teve medo porque, a luz a claridade branca de um bom relâmpago lhe iluminava invariavelmente o seu lado negro e fazia, de si a si próprio, pelÃcula revelada …
(mas isto digo eu, que, como sabe, e saberá melhor que qualquer indivÃduo nesta vida porque me conhece, enfermo de uma estupidez crónica, uma incapacidade para qualquer outra coisa que não seja servi-lo. Servi-lo no pleno e para além do pleno a que tem direito…)
Mas não nos percamos agora com estas minhas deambulações ao seu mundo tão cheio de sabedoria… voltemos ao dia que cheguei aqui, tinha então sete anos. Vim pela mão da minha madrinha, de Valpaços e, até hoje, menino, nunca mais lá voltei… esqueci os cheiros do feno, os cheiros da vinha, o toque das castanhas dentro dos ouriços, o felpo interno, a bonomia da vida comunitária… quase tudo, menino, que, e não lhe digo agora como, desde há algum tempo, fiquei de novo ligada à minha terra, aos meus amigos … por milagre, quem sabe …
em “incriação das memórias†…
por milagre …
Cheguei, como se diz, com uma mão à frente e outra atrás. Éramos muitos irmãos e a minha mãe assim o decidiu. Cheguei e apenas de meu trazia o que um dia lhe dei… dei-lhe tudo... Servi-o como se serve a quem se quer muito bem, mesmo que, desde aquele dia tenha intuÃdo (as crianças intuem tanto, menino Timóteo) que o rapaz de calções e de suspensórios que me olhava no cimo das escadas tinha nele algo que nunca tinha sentido até então num qualquer olhar de gente ou bicho…
Cheguei e, de repente, o céu iluminou-se. Todos os candelabros da sua mãezinha (ainda de velas, como se recordará - só mais tarde o menino os mandou electrificar), estremeceram, vacilaram, balançando como pêndulos mal parados, estava eu exactamente por debaixo de um deles e, veja só, a minha madrinha, a senhora Dona Maria do Amparo, fez jus ao nome: amparou-me puxando por mim para longe, não fosse o dito tombar desgovernado sobre nós. Amparou-me naquela hora, mas não me ampararia por muito mais anos que Deus assim o quis. No entretanto, ensinou-me sem nada esconder todas as receitas dos seus doces favoritos, as compotas que tanto aprecia… o arroz de polvo, o arroz de feijão, a lebre com couve galega … a arte de não deslaçar a maionese (ainda lhas faço caseiras, como sabe) mas não me ensinou a proteger-me quando a luz de um trovão incide sobre a sua alma, pelÃcula digital…
Estou a perder-me do fio da história, menino Timóteo. Quando assim for, o menino já sabe: chame-me à razão… esta coisa de, volvidos tantos anos, ter recuperado a fala, faz de mim este papagaio, esta catatua tresloucada, sei lá, que agarra umas conversas nas outras e se perde num novelo. Faça favor de me lançar farpa, menino…Faça favor, peço-lhe…
Como dizia, nesse dia, o menino deu mostras de si. Desapareceu tão subitamente como tinha chegado, em halos de naufrágio de que nunca mais me esqueci ….Que cara é essa, menino? Não me conhece este vocabulário?... Oiça-me, então e não se espante, menino, quem sou, saberá de hora em diante…
naufrágio, naufrago em casa própria, sem dúvida. Voltou dias depois, quando a sua mãe subiu ao seu quarto, após as vezes sem conta em que, através da Natália, sua ama, lhe ordenou que voltasse ao convÃvio e ao dia a dia da casa…
Do que lhe disse, não sei, sei apenas que a senhora sua mãe, que a alma lhe esteja em descanso, largou as telas, os pincéis, subiu as escadarias sorumbática e voltou com um lago de nenúfares no olhar. Ou, para ser mais exacta, com os linhos mansos da nossa terra - a minha, que também é a sua, a minha que sendo a sua e o senhor tendo ainda hoje lá a mansão, nunca me permitiu que o acompanhasse … que voltasse aos meus. No inÃcio pela razão que conhece, depois porque
“ora Ludovina, seja discreta, acha que não lhe fariam perguntas embaraçosas? E acha que faz algum sentido ir para a casa dos seus irmãos? Palheiros, a bem dizer… aqui tem todo o conforto. Mesmo que viva na casinha dos fundos, tem conforto não têm? Até, com a abertura das ruas, tem acesso directo ao Vasco da Gama… nunca entendi a graça que acha naquelas multidões, aliás, como não entendo onde vai quando anoitece e só volta tardiamente. E escolhe o inÃcio do Outono para tais ousadias. Tem que se deixar disso, porque não lhe fica bem. Não que me interesse, em absoluto, mas sendo serviçal desta casa, o seu bom nome importa. Não me inclua em lamaçais, ouviu bem? …â€
E eu a tudo dizia que sim. Fui ficando, ficando… das suas sobras, das suas migalhas…
ao mesmo tempo que - sei, não tenho a sua capacidade filosófica, mas, oiça bem, bebia da taça de cicuta que poli, o pó e o vento; que continuei dia a dia, ano após ano a desdobrar-me entre a cozinha e onde sabe. A limpar os seus fatos, a curvar-me na graxa dos seus sapatos, a servir os seus pratos; que continuei a servir todos os seus caprichos, todas as suas vontades,
Hoje eu quero que suba (e enfatizava o Eu…)
(nesse tempo a sua famÃlia estava em Valpaços para férias do Natal, o menino estava arrastado com a sua Faculdade, com as cadeiras que nunca concluÃa a tempos e ficou por mais uns dias. Iria depois, com o seu tio Antero, com os seus primos. A seu pedido, fiquei eu e as criadas de fora, a Gervásia e a EmÃlia. Foi o primeiro Natal que passei sozinha, sem a sua famÃlia (que imaginava minha, ainda que fosse porque sem uma famÃlia me sentia nada …). Sozinha, portanto, em vésperas de Natal …ou melhor, acompanhada …
…eu quero que suba, Ludovina, vá arrumar o quarto já … Olhe, há ainda doce de cerejas? Leve consigo uma taça generosa, ah e não se esqueça, quero que a compota contenha as ditas. Bastas... E ria e, sem questionar, cumpria o que me pedia: fui à cozinha, com uma colher de pau enchi a taça, a que tanto apreciava, da Companhia das Ãndias, do serviço da sua avózinha, senhora D. Micas, coloquei na bandeja, sobre o pano de linho bordado a rechelieu, pela sua outra avozinha, senhora D. Genoveva, nascida na Ilha Terceira, que, como sempre dizia, trazia a insularidade gravada em alma … por isso as pestanas se lhe colavam no sal das tardes sob o sol no quintal - bons tempos, menino, quando nos visitava no Verão e, sobre o álamo das traseiras, ao lado das glicÃnias, bordava tais trabalhos …e, de prosa farta, entrada no estio da tarde, dormitava…
Ai menino, bem lhe disse, já me estou a perder de novo no emaranhado das minhas memórias … incriadas, as minhas memórias…
(continua)
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Nota: Este conto é faz parte de uma triologia, composta por
http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,28341.0.html (1º Conto);
http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,28420.0.html (2º conto);
http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,28559.0.html (3º conto - parte 1)
[este] http://www.escritartes.com/forum/index.php/topic,28560.0.html (3º conto - parte 2)
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