M. Nogueira Borges
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« em: Junho 28, 2010, 22:50:02 » |
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SULCOS
1
No casarão da minha infância há memórias penduradas nas paredes, passos de almas ressoando nos corredores, choros de crianças que chamam pelas mães e um cheiro a móveis antigos. No casarão da minha infância há gargalhadas metálicas de duendes perdidos, restos de glórias desfeitas, cães com feridas nas orelhas e um brazão comido pelo tempo. No casarão da minha infância há o eco do bater de uma bengala, o marulhar da água dos tanques, um caracol “ cansado†lambendo um fruto apodrecido e as corridas das crianças na imensidão do terreiro. Como seria bom voltar ao casarão da minha infância, com os filhos pelas mãos, beber água na fonte dos eucaliptos, assobiar às rôlas estouvadas, dar migalhas aos peixes da taça e não pensar no dia seguinte. Mas não volto. Já estou AQUI, desfolhando os livros desses tempos; os filhos perguntando por amanhã e eu sem saber o que responder. O casarão da minha infância foi separado por muros como duas históricas Alemanhas, com as pessoas sem se falarem e só os olhos a espreitarem.
2
Quando era criança o sol sorria-me em todas as manhãs de Verão, as amendoeiras floriam mesmo na Primavera, o céu sofria os entardeceres outonais e a chuva caÃa, suavemente, nos caminhos de lama. Naquele tempo ia ao pomar das laranjas de umbigo, sujava as botas no campo do “ americano “ e chutava uma bola no espaço dos meus olhos; trincava os dióspiros da abastança, ia pelas ramadas de Palhais à descoberta de ninho, seguia os melros de bardo em bardo, espantava-me com o canto do rouxinol e abrigava-me na frescura do caramanchão dos lilazes. Agora os terreiros e a verdura acabaram, as aves fugiram dos pesticidas do progresso, os frutros nem lavados em mil águas se purificam e os ninhos escasseiam com as centrais nucleares à porta. A vida deu muitas voltas, os meninos da minha aldeia dispersaram-se e já não jogamos à bola no adro da capela. Alguns até morreram na guerra, outros acabaram-se nos tempos da morte natural e outros, ainda, ficaram para escrever os poemas do passado, os poemas de sempre.
M. Nogueira Borges
28/6/10
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