António Lóio
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Quanto menos penso mais existo
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« em: Fevereiro 13, 2011, 13:00:42 » |
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O Engenheiro
Os olhos pequenos, mas brilhantes, espelhavam a inteligência duma mente arguta. Não sei, que caminhos trilhou aquele corpo ao atravessar a voracidade da existência, mas não merecia ter consciência da degradação da vida que se ia esfumando a caminho do fim inexorável. Na sala do 3º piso, daquele Hospital de provÃncia, respirava-se a frugalidade e frieza dos edifÃcios públicos nas paredes nuas e brancas, que contrastavam com meia dúzia de cadeirões forrados de napa vermelha onde se aninhavam mortos vivos, amortalhados em mantas desbotadas. Na semi obscuridade do fim de tarde a televisão debruçada do tecto projectava nos rostos macilentos e enrugados mirÃades de cores provenientes de anúncios debitados em catadupa. O intenso cheiro a urina completava aquele quadro irreal. Estático no meio da sala, fui assaltado por enraivecidos pensamentos sobre a precaridade da vida, a finalidade da existência dos seres biológicos, falácias de pseudo justiças divinas, etc.
Não dera conta da sua presença, mas, ao olha-la, a alvura do seu traje impecável, e a sua voz jovem sobressaltaram-me: -Quem procura senhor...? -Srª Enfermeira, diga-me por favor, qual destes senhores é o Engº Fonseca?
Seguindo a direção do seu olhar, deparei com os tais olhos pequenos , mas brilhantes que me tinham chamado a atenção quando ali entrara.
Quando na 5ª feira da semana anterior o telefone do meu gabinete tocara, mal podia imaginar que a minha interlocutora me iria fazer recuar 30 anos, quando, ainda jovem, recém formado, ingressara na W... Chemicals SA, cujo administrador, o Engº Fonseca, se arriscara a escolher-me entre mais de 30 candidatos. Ali permaneci 2 anos, até que as minhas ambições me levaram para outras paragens. Ocasionalmente chegavam a mim notÃcias do meu primeiro patrão, mas nos últimos anos nunca mais ouvira falar dele. Foi, pois, com tristeza que naquele dia tomara conhecimento da doença degenerativa que o minava, mas também com curiosidade, porque o Engº Fonseca num dos poucos momentos de lucidez, manifestara o desejo de me rever.
-O senhor desculpe – ouço a enfermeira dizer-me – não sei se é da famÃlia, mas o Sr. Fonseca, ultimamente anda a portar-se muito mal. Além de não querer comer, grita com toda a gente...até tivemos de o amarrar à cama... Só se acalma se lhe dermos uma folha de papel e uma caneta... mas depois enche a folha de gatafunhos, letras e números sem nexo...., senão veja!
Olhei a folha meia amorrotada e pude descortinar que os ditosâ€gatafunhos†não eram mais que fórmulas quÃmicas, reações redox, hidrocarbonetos com anel benzénico etc. Aproximei-me e encarei-o, certo que me não iria reconhecer.
Então Sr. Engenheiro...não se recorda de mim? Então... está melhor? Que é que está a escrever? Com as mãos trémulas estendeu-me uma folha, agarrando-me o braço com força! A custo ouvi-o articular:
-Por favor...p...or fa...vor...
Na alvura daquela folha de papel A4, bem no meio, alinhavam-se três letras. “ KCN “, a fórmula quÃmica do Cianeto de potássio, terrÃvel e fulminante veneno. Olhei os seus olhos suplicantes e a custo consegui murmurar, “ Não posso Sr Engº... desculpe...não posso...â€, enquanto me libertava, fugindo dali com os olhos marejados de lágrimas.
Na TV um jovem pseudo humorista, desdenhava da velhice, com piadas de mau gosto sobre os esquecimentos dos doentes de Alzheimer.
Leça da Palmeira, Janeiro de 2011 TOM
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