Maria Gabriela de Sá
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« em: Dezembro 15, 2013, 19:02:02 » |
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After regresso de vacances, depois de lidos todos os desabafos proferidos durante a minha ausência pela babélica assembleia e, apontes todas as notas para eventual réplica, dei comigo a pensar na performance que logrei ou não atingir nesse meu perÃodo de lazer. O tempo, a quem aproveito para mandar ao diabo que o leve, desde bem cedo deu mostras de ter fico encarregado por S. Pedro de abrir as comportas do céu, derramando tantas gotinhas de água quantas palavras têm os dicionários da portuguese language e congéneres estrangeiras, para com elas mortar o meu sol e que, assim, na mais pura renitência, não logrou outra coisa senão deixar a minha pele matada e mais branca do que as neves perpétuas das montanhas do Quilimanjaro.
Como se todo este nonsense temporal não bastasse e numa tentativa de o fintar, fui até a uma esplanada à beira mar plante e com a chuva assentada na areia da praia. Saquei dos bites do meu computador e eis que me dediquei afincadamente ao verbo, desatando a tomar os apontamentos necessários tendentes a um ensaio que fosse suficientemente inovador na arte da escrita.
Confesso que, desde inÃcio, se me plantou pela frente uma caterva de dificuldades, a começar por uma tendinite que se alapou (esperem só um bocadinho pois tenho de dirigir uns insultos ao meu computador e dar-lhe umas boas reguadas ï€ não é que este anormal não reconheceu as palavras alapou e reguadas e insiste em chamar-me estúpida, ao mesmo tempo que lhes coloca um traço vermelho por baixo!?...).
ï€ Ai, ai! ï€ queixa-se o bicho ï€ Deixa-me explicar-te!
ï€ Então, explica-te lá!
ï€ Das duas uma: ou quando eu fui feito as palavras não existiam ou então esqueceram-se de as introduzir na minha massa shiftiana. E não me batas mais, por favor!
Depois de sane este desagradável episódio, tenho de acrescentar que a referida tendinite se apegou à minha mão direita, facto que me obrigou, então, a largar o rato informático causador da maleita, enquanto as minhas pálpebras começaram a ficar tão cerras que o remédio foi levitar um pouco no sono.
Foi quando dei comigo lá no cimo de uma imensa torre, onde uma data de pessoas fazia um enorme e indescodifÃcável alarido (computador, se me passas outro risco por baixo, não sei o que te faço! Não sabes o que é indescodificável, é?... Além disso, pode-me muito bem apetecer inventar uma catrefada de corruptelas e tu não tens nada com isso. Está quieto, de uma vez por todas!)
Perante tanto barulho, lá na torre, vi-me a tirar um cagarro do maço, desatando a mandar fumaças para o ar.
Ninguém pareceu dar conta da troca do i pelo a, já que o gesto, lá como cá, é tudo, pelo que logo ali me ocorreu a ideia de, no que diz respeito à vÃscera linguaruda, substituÃ-la pelos velhinhos hieróglifos, quando pretendesse comunicar com alguém.
De repente, saindo da confusão, alguém se dirige a mim e, pelo que disse doutoralmente a seguir, apercebi-me de que o meu erro não lhe passara despercebido: ï€ Lapsus linguae.
Constatei, então, que estava perante um dos meus tetravós latinos, que numa espécie de viagem ao passado e com ar de mágico e de astrólogo (atenção que a palavra mágico é apenas uma figura de estilo e não se dirige a ninguém em especial...), enquanto não fosse definitivamente introduzido o esperanto, assistia com manifesta complacência à enorme confusão linguÃstica que, segundo ele, estava nitidamente de regresso ao berço cuneiforme ou, até, e para ser mais preciso, à velha Babel.
Foi quando me lembrei de perguntar ao velho se não achava esta história de trocar o ado pelo egue, surripiar os vocábulos a William Shakespear e outras coisas no género uma enorme barbaridade, ao que o homem me respondeu:
ï€ Querereis vós enfrigorificar a lÃngua ou torná-la mais rÃgida do que uma porta que nenhum de vós seria capaz de abrir senão a golpes de dicionário ou a machadadas de gramática? Quereriam, igualmente, falar e escrever ainda à moda de Gil Vicente?
ï€ Ã“ Chefe, não é isso! Mas, é que eu penso que o nosso idioma atingiu um grau de perfeição que não se deveria perder e que, pelo contrário, se devia cultivar.
ï€ Estás maluca! Maior perfeição do que a lÃngua de VirgÃlio ou a de Homero não houve ainda e vê o que lhes aconteceu! Até nem na missa se faz uso da primeira! Estão completamente matadas, só para seguir o teu ensaio. E pergunta-me lá tu o que é um megabyte a ver se os meus neurónios não dão uma volta mais espiralenta do que estas escadas que tu montaste!
ï€ Resumindo, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, já que o mundo é composto de mudança!... É isso?ï€ pergunto.
ï€ Já Camões o disse. Mas, olha que o plágio sempre foi muito mal visto!... Vê se inovas um bocado...
ï€ Então, quer dizer que aprovas o meu ensaio?
ï€ Claro! Contudo, para já, vê se estás quieta e se não agravas a tua tendinite!
ï€ Está bem! Já agora, diz-me cá uma coisa: para te agradecer a lição eu deveria dizer-te obrigada ou obrigado?
ï€ No rigor dos princÃpios do mais puro latim, deverias, toda a gente deveria, dizer obligatu, com um tremazinho sobre o a, que, parece-me, tu não sabes colocar ou, dito à portuguesa, obrigado, já que se trata de uma interjeição e, como tal, de uma palavra invariável. Repara bem, até, no que diz o dicionário da Porto Editora na segunda acepção de obrigado. Este pai dos burros até lhe chama fórmula... E uma fórmula, à semelhança da do ácido sulfúrico, não é coisa que se altere sem que daà resultem estragos na experiência. Na verdade, tu, mulher, não és, adjectivamente falando, obrigada a agradecer-me. Se o quiseres fazer é lá contigo! Mas, não te sintas confrangida a isso, que isso, a mim, não me provoca qualquer constrangimento. Contudo e como a adjectivação é prática comum na tua lÃngua, se quiseres dizer obrigada...
ï€ Está bem! E, para acabar, assim, mais na intimidade, não vou dizer nem obrigado, nem obrigada mas, simplesmente, obrigadinha, já que tenho a sorte de ser portuguesa e posso enveredar pela senda dos diminutivos. Imagina que eu era francesa! Achas que ficaria bem dizer merciezinha ou merciezinho como se faz ao chá para o tornar mais doce?
ï€ Ah, ah, ah, ah .Só tu me farias rir assim, Rafaela!
ï€ Bom. Uma vez que tenho de tratar a tendinite, diz-me lá o teu nome, a ver se saio das alturas desta torre que até me causam vertigens.
ï€ Séneca, em pessoa, morridinho da Silva, autor latino.
ï€ Seca e das grandes vão achar, os meus amigos, que lhes dei... Mas, para os compensar, aqui vai um abraço para todos.
Porto, Setembro de 2003
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