Papel em Branco

[Maria Gabriela de Sá]

                                                 Papel  em Branco


      O papel acaba de deixar de estar branco, oito palavras iniciais que não tem nada mais que as sustente. A não ser o branco das minhas ideias. Hoje, tudo espremido, não dá nada.

      Não sei se isto é felicidade ou indiferença, às vezes uma coisa e outra parecem equivaler-se. Estar bem é não mover um dedo, deixar o mundo quieto, ao menos aparentemente, que o sol nunca se dispôs a obedecer a ninguém. E gira, gira, fazendo do dia noite e da noite dia, sem saber porque faz tudo tão certo e cronometrado. O sol deve padecer permanentemente de indiferença. Ou, então, é sempre feliz, embora nunca esteja mais do que um milésimo de segundo no mesmo sítio, nunca o mesmo calor nos aquece duas vezes. Passa e anda, sem se importar se fez bem ou mal no que fez por onde andou. Que lhe importam as flores a desabrochar perfumando o ar, com as abelhas a roubar-lhes o mel e espalhando pólen por todo o lado? Que lhe importam os raios ultravioletas e o buraco do ozono a romper constantemente as camadas do céu, para onde todos queremos ir um dia quando a terra for já demasiado pequena e insalubre para nos acolher? São-lhe magistralmente indiferentes as esplanadas onde o aguardamos tantas vezes em frente ao mar e a uma chávena de café, sob um chapéu às cores, com um jornal à frente e as notícias do mundo onde nos calhou viver: o chumbo do Tribunal Constitucional aos escandalosos avanços do governo sobre as nossas vidas que ele quer transformar em vidas de papel, o casal que morreu no mesmo dia por não suportar a ausência do outro, os ex-esposos que se matam e suicidam de comum acordo e talvez com o mesmo vazio com que tem vindo a ser preenchida esta folha em branco, o sobe e desce das acções da bolsa e a miserável catástrofe onde a nossa pobreza de dinheiro e valores nos deixou na nossa inocência, perdida da forma mais dolorosa.

      Mas o Sol é bom, percebe-se por que já foi um Deus e a razão de ter ouvido, ao longo da sua imensa vida, tantas orações, tantos pedidos para tudo e mais alguma coisa. Será que a Chuva algum dia foi uma deusa a ombrear em prestígio com o Sol? Ao menos foi “Irmã” de mil e uma criaturas na boca de um santo capaz de perceber os ecossistemas da criação onde eu navego hoje entre o era e não era.

      Não sei o que é, de que sofro neste momento, nem por que ando aqui a tecer vazios com as coisas que preenchem a vida. Mas não me apetece pensar, nem esperar nada, nem do universo nem de ninguém e muito menos de mim, de quem deveria talvez esperar mais do que de qualquer outra pessoa por me conhecer há mais tempo, nem devo esperar coisa alguma de alguém de carne e osso, ou até de um deus cheio de espírito que sanasse esta estranha felicidade, ou esta não menos estranha indiferença onde o dia me encontrou carregada de pulseiras de plástico vindo da China e a única coisa que hoje me deixa um bocadinho mais colorida.
 
      A menos que vá maquilhar-me ao fim de 572 palavras de uma tinta primária com que pintei uma página em branco, em branco na mesma porque não disse nada…

      E se fosse apanhar um pouco de Sol?

[Goreti Dias]

O Sol, por muito que bronzeie as nossas desgraças, nunca as encobrirá, até porque não o intenta. Ao contrário de outros que desesperadamente as pintam de todas as cores...
Podes ir apanhar sol. Mas disseste muito!

[Maria Gabriela de Sá]

Obrigada, Goretidas, pode-se até dizer muito,  mas não o suficiente para sacudir o pó da letargia que às vezes nos cobre.


Abraço

[Goreti Dias]

Concordo!

[helenacosta]

  Uma página, por sinal, bem recheada!

[Conceição Constantino]

Encher uma  folha com um excelente texto é obra

[Maria Gabriela de Sá]

Margarite Duras  chamava  àquele estádio inicial, à frente do papel, "O bloco". Era uma coisa que já era alguma coisa mas que ela não sabia o quê. Ela tinha de o desbaratar para lhe extrair a substância. Obrigada, Helena Costa e Conceição Constantino pelas vossas amáveis palavras.

Abraço

[Nação Valente]

...mas disse tanto. Boa reflexão sobre a nossa "insignificância" e a nossa ignorância num cosmos desconhecido.
Abraço

[Maria Gabriela de Sá]

Disse bem, Nação Valente, a nossa insignificância. Às vezes não percebo por que se diz que "Eu" e qualquer outro "Eu" fazemos parte do todo universal  uma vez que, quando "apagados",  o universo gira de igual modo sem nós fazermos absolutamente nenhuma diferença.  É o que eu eu penso hoje, se calhar estarei errada, no mínimo o universo deve chorar por não poder contar connosco, não nesta dimensão....

[Dionísio Dinis]

Agora, mesmo a preto e branco a escrita ganha cores e formas de arte.

[Conceição Constantino]

Coube-me a sorte de passar de novo na sua página e no seu belo texto. Gostei de voltar a ler

[Maria Gabriela de Sá]

Obrigada.

Gosto da sua poesia, tanto que já a li no evento de segunda-feira em Matosinhos.



Abraço

[Conceição Constantino]

Sim?! Muito obrigada! Também gosto muito da sua escrita

[Tere Tavares]

Eis então que nasce o sol e a terra e os planetas e o universo e outro e  mais outro universo. Todos com odores de deuses.
Palmas para tua escrita.

[Maria Gabriela de Sá]

Eis então que nasce o sol e a terra e os planetas e o universo e outro e  mais outro universo. Todos com odores de deuses.
Palmas para tua escrita.

Obrigada Tere Tavares, vemo-nos por aí, nos locais e  nas coisas que gostamos de fazer,  escrever.

Beijinho