António Lóio
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Quanto menos penso mais existo
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« em: Dezembro 20, 2014, 23:34:03 » |
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Rua das Flores
Em meados do século passado, quando lá nasci, a Rua das Flores, bem situada no coração do burgo tripeiro, era das mais movimentadas da minha cidade. A chiadeira das carroças carregadas de mercadorias, que numa azáfama anárquica abasteciam as lojas e carvoarias, chegava à varanda do terceiro andar do nº 107 onde eu me instalava, como se de um camarote rodeado de sardinheiras dum teatro ao vivo se tratasse. Lá em baixo, no palco, a vida desenrolava-se nas múltiplas facetas que eu absorvia maravilhado e surpreendido. Os pregões das peixeiras e hortaliceiras, com as suas canastras de vime entrançado que milagrosamente equilibravam nas rodilhas à cabeça, enquanto os seus socos matraqueavam o cimento dos passeios como castanholas de imaginários passos- dobles, rivalizavam com as padeiras cujas cestas de pão em forma de canoas sulcavam hipotéticos rios que só corriam na minha imaginação. Mais além, as leiteiras, com as brilhantes bilhas de alumÃnio à cabeça lembravam torres ambulantes de minaretes prateados onde se equilibravam as medidas de quartilho e meio quartilho, com que aviavam os fregueses. Em contraste, enormes atados de lençóis brancos desciam a rua, transportados pelas lavadeiras que desapareciam engolidas pelos portais escuros e escadas Ãngremes, matando o ar bafiento com o cheiro do sabão azul e reflexos dourados do sol que corava a roupa anotada no rol das freguesas. Naquele palco empedrado, não passavam óperas trágicas, como a de Medeia que matou os filhos por raiva e amor de Jasão, ou a de Ofélia chorando o seu primeiro amor. Eram mais do género operetas bufas, representadas por personagens burlescas, que quem sabe, talvez tenham inspirado um ilustre filho do Porto, Almeida Garrett quando escreveu a opereta “La lezione degli amanti†em 1810. A minha rua era rica em ouro e pedrarias com, as suas ourivesarias que douravam o seu lado direito, enquanto do lado esquerdo, as lojas de panos atraÃam as lavradeiras e raparigas casadouras dos arredores, que quando desciam à cidade, aà se abasteciam, engrossando assim os seus dotes, com enxovais, cordões e arrecadas, que depois exibiam nas feiras e romarias das suas terras. Mas a história duma rua, também passa pelos seus edifÃcios e por quem a habita. Neste caso estão o edifÃcio da Santa Casa da Misericórdia e a sua Igreja, as casas dos Maias, dos Cunhas Pimentéis, dos Sousa e Silva, dos Constantinos e da Companhia Velha. Ficou célebre o crime praticado pelo médico Urbino de Freitas, que envenenou os seus sobrinhos com amêndoas envenenadas a fim de lhes herdar as fortunas. Mais tarde António Rebordão Navarro imortalizou esse crime, num livro cujo tÃtulo era “ O crime da Rua das Floresâ€. As velhas furgonetas envoltas em nuvens mal cheirosas de fumo escuro transportavam as mercadorias que abasteciam as lojas, ziguezagueando por entre carroças puxadas por parelhas de bois que se arrastavam guinchando num lamento sempre presente. As velhas tascas eram assim abastecidas do vinho que ondulava nos tonéis ao sabor das irregularidades das pedras arredondadas das calçadas, atapetadas aqui e ali por excrementos amarelos, que os pneus dos automóveis se encarregavam de espalhar. (Excerto do meu livro “Portista, portuense†)
Tom
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