Maria Gabriela de Sá
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« em: Dezembro 12, 2014, 23:07:09 » |
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Entre o verde intrincado da mata, na estrada lisa e sem curvas, estava ele na berma, sereno e plácido, mirando com complacência o seu mundo que, por instantes, se cruzou com o meu no dourado crescente da manhã de um dia de outono. Sentado como um aristocrata, o gato amarelo, de rosto quadrado afável, parecia-se com o Rei Sol, majestosos um e outro, aberto e luminoso como o astro lá no alto cintilando há umas boas horas e sem nuvens desmancha-prazeres. Sorridente, diria eu, se isso não fosse demasiado artificioso, e mais do que preparado para dar os bons dias a transeuntes simpáticos e amigos de gatos. Pareceu-me um menino bem-nascido, gordo e lustroso, a preguiçar as horas sem tempo e sem pressa de uma vida que, a avaliar pela aparente macieza do seu pêlo de ouro, se não decorria num palácio como o de Versailles, aconteceria certamente num lar amistoso, com comida e muito amor. Talvez até com mãos macias de crianças a acariciá-lo diariamente, no fim da escola e antes de dormir, quantas vezes em jeito de gato-sapato. Olhando a casa de onde o gatinho se teria escapulido como bom libertário e amante do ar livre, pude ver que não se tratava, de facto, do palácio francês e nem sequer do de Belém. Em todo o caso, observando o frontispÃcio e o exterior, senti-me a imaginar, algures a um canto no coração da moradia e num lugar recatado, uma caminha confortável, um prato com Whiskas e um caixotinho de areia fina para o bichano viver na paz dos anjos a sua vida de felino nascido para ser feliz.
Mais do que mirar-me e tirar-me a pinta, o Rei-Sol, antes de nos cruzarmos e enquanto me olhava, ainda ao longe, parecia querer despir-me o corpo preto do fato de treino e ver até que ponto a minha alma não correspondia à cor da roupa. Na mútua e psicológica observação sobre as caracterÃsticas de cada um e respectivas bondades, o gato deve ter-me sentido como alguém em cujo colo poderia ronronar confiante e abandonar-se a mimos, de que não excluiria uma taça de boa comida no fim e na hora da fome. Já eu, mal o vi sentado na berma a mirar a circunferência do horizonte, com um recente descoberto amor por felinos, nem sequer pensei na sua reputação de indomáveis selvagens que, vivendo há milénios no meio dos homens, nunca atingiram o estatuto do seu melhor amigo, sempre perdido a favor dos os Bobis. Sem preconceitos, olhando-lhe os olhos amarelos e melados, nunca me passou pela cabeça que ele não fosse a criatura meiga e ronrona a que a sua cor levava a pensar. Além de que eu seria bem capaz de lhe tecer uns longos mimos na cor dourada do pêlo, se não fosse muito atrevimento de uma desconhecida entrar-lhe assim de chancas nos sentimentos e na intimidade.
Durante breves instantes, olhávamo-nos com confiança mútua e perspicaz entendimento. Mais, com estranha empatia e como se fossemos amigos de longa data. E quando, daà a pouco, nos cruzámos no ângulo raso do meu passeio matinal, acariciei-o suavemente com a voz, saudando-o numa entoação calorosa e com um bom-dia vindo do coração, a abarrotar de respeito por todos os seres do planeta, amados por Deus sem nenhuma preferência de uns sobre os outros. Ele, agradado com as nuances do dia, se não fosse ainda artificioso e quase blasfemo pôr um gato a sorrir, agradeceu-me rasgadamente com um terno bocejo e não terá ido mais além lançando-se nos meus braços por não dever ronronar para uma ilustre desconhecida numa estrada desenhada no meio de uma mata verdejante. Enquanto isso, olhando para traz por cima do ombro e desfazendo já o passeio matinal, lancei-lhe, por hábito e educação, a despedida de um “até amanhãâ€, que nem sequer tinha a certeza se iria acontecer quando o amanhã à s vezes é um sÃtio longe de mais para se visitar com assiduidade. E eis o dia seguinte, a mata ali ao alcance, de novo o sol no alto a acariciar a manhã, convidando ao passeio. Longe estava a véspera, o Rei-Sol desfeito das lembranças e outra vez a mesma estrada a desafiar os pés, que se puseram a caminho pisando a caruma dos pinheiros e absorvendo o ar fresco. Até ver o gato dourado no mesmo miradouro junto à casa, que não era o Palácio de Versalhes, nem o de Belém e, muito menos, o PaÃs dos Gatos. Mas até parecia. O Rei-Sol, desta vez, estava acompanhado por dois amigos, malhados entre o branco, o negro e o amarelo, uma famÃlia completamente alheia aos preconceitos raciais. E eu, uma estranha até à véspera, não conseguia vislumbrar naquele pintalgado de cores a hierarquia familiar e o papel que competia ao meu gato aristocrata. Talvez fosse o pai, ou a mãe, Maria Teresa, ou mesmo até Maria Antonieta caso o meu gato dourado fosse apenas descendente do grande rei francês em faz de conta. . Em todo o caso, bichanavam por ali, conversavam lÃnguas- de-gato, um conclave sobre o qual eu não sabia o tema, nem me daria ao desplante de o perturbar com a minha humana intervenção e talvez dilatória do desejado fumo branco.
Em dias consecutivos, de novo o Rei-Sol estava a entabular conversa comigo. Desta vez, com maior intimidade, ele e os dois amigos, a dançar-me aos pés, esticados, alongados em miaus intermitentes, com pressa e a apelar à minha atitude. Deveria ser uma devidamente adequado aos desejos colectivos que eu, inábil em lÃnguas estrangeiras, sobretudo de gato, demorava em entender, enquanto, ao som dos mios saindo da casa e de várias direcções, contava, um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete gatos a rodar-me as saias. Finalmente, dura de compreensão, percebi, passado um pedaço, os bichanos estavam com fome, exigiam sem demora umas sardinhas ou uns carapaus, se não pudesse ser um prato gigante de Whiskas para lhes acalmar o estômago, vazio sabe-se lá há quanto tempo.
- Oh, meus queridos, mas eu ando apenas a fazer a minha caminhada higiénica, a queimar calorias e gorduras e não trago comigo dinheiro nem sequer para um papo-seco! Lamento informar-vos, mas hoje não habemos papa!
Foi o que lhes disse. Ao mesmo tempo, tentava afastar-me daquele Sete-Estrelo que, ao redor das minhas pernas e desconhecendo a lÃngua de gente como eu desconheço ainda hoje a de gato, prosseguia a dança e como se eu fosse o caminho para uma peixaria de abundante comida. No meio de todos, havia um, quiçá o mais teimoso ou esfomeado, a quem tive de repetir, por diversas vezes, a minha insolvência. “ Desculpa gatinho, mas só amanhã haberemos papa, hoje não tenho nada para vos dar. Voltareiâ€, como se o pobre gatito pudesse adiar a fome por um dia ou mais como eu estava a adiar numa promessa a minha viagem à quele pequeno paÃs de gatos. Até o bichano perceber que não haveria mais nada a fazer no dia em que uma mulher gorda andava a queimar calorias e ele a berrar de fome.
Para aliviar a minha consciência de pobretana desprevenida, ao vir embora desejei aos sete gatinhos da mata que tivessem ao menos um dono carinhoso para lhes matar a fome ao fim do dia quando chegasse a casa depois do trabalho e me lavasse a a manchada imagem junto dos pupilos . Ou, então, se fossem órfãos de dono, ao menos que a imaginada velhinha que lhes daria de comer e os mantinha luzidios e simpáticos não demorasse muito com as espinhas de chicharro ou fosse lá o que fosse.
Finalmente eu, não tendo podido ir à mata num passeio de dupla finalidade, confesso que ando realmente com alguns problemas de consciência por não ter ainda ido dar uma ou duas latinhas aos pobrezinhos dos gatos.
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