Nação Valente
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outono
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« em: Dezembro 30, 2014, 22:50:23 » |
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Antes do adeus
No ano em que o Zé começou a ser meu hóspede, o meu astral andava em baixo. O malvado do saturno , o senhor das dores, tinha entrado na minha vida como me dizia a Leocádia, minha amiga e astróloga com casa na praça. Em poucas palavras, no inÃcio do ano , o meu filho Toni, o primogénito tinha passado à clandestinidade. Nada de polÃtica. Aconteceu que o rapaz teve de partir para França de supetão para não ir combater os turras. Desde então vivia em Paris, onde fazia figuração no cinema. A última vez que o vi foi ao lado do Steven Mqueen no filme “Le Mansâ€. E como estava lindo o meu menino. Aproximava-se o Natal e o Toni não aguentou as saudades. Arriscou e resolveu vir passar a consoada connosco. Correu tudo bem até ao dia 24 de Dezembro. Nesse dia bateu-me à porta o meu genro, um pequeno industrial, com acesso a informações privilegiadas. -Onde está o Toni? - SaÃu com amigos. Mas há problema? O que se passa? -Temos de o tirar rapidamente do paÃs. A qualquer hora pode aparecer a polÃcia para o prender. Entrei numa grande aflição. O meu genro e o senhor Zé o único hóspede presente nessa altura, procuraram acalmar-me. - Eu posso ajudar, disse o senhor Zé. A minha terra é próxima da raia. É uma aldeia o onde havia muitos contrabandistas. Agora estão reformados porque o contrabando já era, mas ainda são aptos para o ajudarem a dar o salto. O Marcelo Caetano tinha substituÃdo o Salazar, mas as mudanças eram poucas. Falava em evolução na continuidade. E com razão, porque os bufos do regime estavam em todo o lado. Todo o cuidado era pouco. No entanto, o senhor Zé, merecia-me total confiança. Sabia que participava nas acções da oposição. Houve uma vez que chegou a casa amachucado . Tinha sido perseguido pela polÃcia polÃtica quando distribuÃa propaganda, tendo sido preso e sujeito a interrogatório. Foi solto por falta de provas, mas não se livrou de uns apertões valentes. Só para especificar a alusão da narradora secundária, esclareço que, noutra perspectiva, já não era nova a minha relação com a tortura. Esta começou na escola primária. Estava habituado desde sempre à s tradicionais reguadas. Mas o mais duro aconteceu quando tivemos um professor com sotaque beirão que tÃnhamos dificuldade em perceber. Consta que era unha com carne com o tintol. Talvez fosse seguidor da máxima salazarista, beber vinho dá de beber a um milhão de portugueses ou então, sentia a falta da namorada da qual recebia uma carta todos os dias, que abria, sempre, no inÃcio da aula,a hora da chegada do correio. Depois prendeu-se de amor por uma Maria lá da aldeia e deixou de receber cartas de amor. Fosse porque razão fosse, o certo é que malhava por tudo e por nada. Era chapada, ponteirada, puxão de orelhas. E como isso ainda não chegasse colocou-me a guarda-redes da sua equipa, nos jogos que fazÃamos no recreio das aulas. Quer dizer, apanhava quando não resolvia as fracções ou as expressões numéricas, e voltava a a apanhar de cada vez que a bola passava por mim sem dizer água vai. Num jogo em que estava colocado na baliza formada por dois postes de cimento, que estavam na divisória com a escola feminina, umas fedelhas provocaram-me, volt ei-me para trás, precisamente no momento em que a bola aproveitou para passar. O senhor professor virou-me gentilmente a cabeça para o lugar onde devia estar virada. Mas pelo facto de a mão ser muito avantajada, deixou-me um olho fechado. Há males que vêm por bem. Com um único olho operacional não podia ser guarda-redes. E assim acabou a minha carreira de futebolista. Mas fiz um bom tirocÃnio em levar porrada. Partimos na tarde desse dia rumo ao Sul. O senhor Zé viajava ao lado do meu genro que era o condutor. Eu seguia com o Toni no banco traseiro. O meu filho estava calmo, mas eu sentia que o peito ia explodir. Seguimos por estradas secundárias sem ser interrompidos por nenhuma brigada policial. Ao cair da noite chegámos a uma pequena povoação perto do Guadiana . O senhor Zé saiu da viatura e mandou-nos esperar. Pouco depois chegou com um indivÃduo esguio como um pinheiro bravo. Entraram no carro. Disse: -Apresento-vos o Zé do Salto, velho contrabandista e emigrante reformado. É pessoa de total confiança. Vai levar-nos até junto do rio onde procuraremos um pescador para passar o Toni para a outra margem. Precisamos da máxima descrição. Os bufos estão em todo o lado. O senhor Zé do Salto olhou-me e com um tom calmo e determinado disse-me: -Estou ao corrente da situação. Daqui a pouco o seu filho estará livre de ser carne para canhão. Esta guerra que está a destruir uma geração de jovens também me atingiu. O meu filho mais velho foi mas não voltou. Uma mina pulverizou-o. Os outros dois vivem em França e não voltarão enquanto este regime estiver de pé. Acredito que mais dia menos dia cairá. Seguimos já noite cerrada até um pequeno lugarejo na fronteira. O senhor Zé do Salto dirigiu-se a uma casa próxima da margem. Regressou pouco depois, com um semblante preocupado. - O barqueiro que fui visitar recusa-se a fazer o transporte. Diz que o rio está muito caudaloso. Receia não p conseguir atravessar. Quando terminou o seu relato, emergiu da escuridão fria de Dezembro, um vulto indistinto e inesperado. Ficamos expectantes. Ao aproximar-se vimos que vinha embrulhado num capote tipo militar. Acendeu um isqueiro para servir lume à ponta de um cigarro. Desenhou-se na luz da chama um rosto esguio onde rugas davam a ideia de uma serra cortada por regatos secos. O Zé do Salto falou: -Mas que diabo fazes aqui Paco Caballero. Vieste do além? Conho Zé do Salto vienen antes del ParaÃso. La casa de RosalÃa. -Ó homem ainda não te reformaste-te’ -De carabinero sÃ, pero no la adicción de las mujeres.
O senhor Zé do Salto sossegou-nos. Disse-nos que o Paco era seu amigo desde os tempos do contrabando apesar de estarem em campos opostos. Tinha perdido o pai, um anarquista, na guerra civil, a lutar pela república contra Franco. Depois da guerra terminar, entrou para a guarda civil porque precisava de alimentar as bocas que lhe pediam pão. E chegaram a ser tantas que o magro ordenado não era suficiente. Fazia-se de cego quando passavam contrabandistas na sua área e deles recebia algumas oferendas. à sua maneira era uma forma de se opor à ditadura. Para mais, sabia-se, que para além da matriz a mulher oficial, tinha sucursais dos dois lados da fronteira. E dizia-se que tinha filhos das duas nacionalidades. Era um verdadeiro internacionalista revolucionário. Pero, ¿qué haces aquà a estas horas Zé ? Volvimos al contrabando ?? -De certo modo sim, Paco. Quero passar a encomenda mais preciosa. A vida de um jovem que foge à guerra. Contava com um pescador, mas tem receio de atravessar com esta corrente. O senhor Paco emocionou-me na minha viuvez sentimental, desde que me separei do pai dos meus filhos. E fosse outra a situação cairia a seus pés. Com um voz que me lembrar Humprey Bogart em Casablanca, deixou no ar daquela noite fria, mais palavra menos palavra , e pelo que percebi, o seguinte: "se é para salvar uma vida, seja porque razão for, também viro contrabandista. Tu sabes que eu espalhei vida por esta raia. Se me derem essa honra, regresso agora à minha sede, e levo o chico comigo. Sabes que não há caudal que me pare. Aliás tenho um pacto de irmandade com o rio. Garanto que amanhã o jovem estará na estação de Ayamonte de onde viajará de comboio para Sevilha". O rio quebrava,a monotonia da paisagem rude das margens. Parecia uma passadeira ondulante que tudo submergia. O Toni entrou na lancha do velho carabineiro reformado, mas pouco. -o rio e eu temos um pacto de não agressão, disse na despedida. Confiei no senhor Paco e até me apeteceu-me ir com ele, mesmo que o destino fosse o inferno. O barquito foi desaparecendo na imensidão da água, cada vez mais barquito, até chegar ao porto de salvação O Toni chegou são e salvo ao seu destino e tudo voltou ao rame rame habitual. Não esqueci, nem nunca vou esquecer a ajuda que o senhor Zé me deu. Por isso fiquei muito abalada com o que lhe aconteceu uns meses depois. Tudo começou quando a sua namorada o trocou por um piloto cinquentão, de uma companhia de aviação. Não era nada que eu não estivesse à espera. Sempre que os encontrava, ocasionalmente, nas salas de algum cinema, dizia de mim para mim, “esta tipa tem cara de cabra vadiaâ€. Oxalá me tivesse enganado, mas não foi isso que aconteceu. O senhor Zé ficou de rastos. Deixou de comer. Passava noites acordado. Emagrecia a olhos vistos e parecia um cão sem dono. Metia dó. Começou a faltar ao trabalho e não tardou a ser despedido. Não me pagava a hospedagem, mas isso era o menos. O que eu desejava era voltar a ver o meu menino recuperado. Sim que todos os que ali habitavam eram para mim filhos adoptivos. O doutor Abel Sisudo da Caixa de Previdência, mandou-o fazer uma pilha de exames. No dia em que foi saber os resultados, pedi-lhe para me deixar acompanhá-lo. O médico olhou para as análises sem mexer qualquer músculo facial. Pegou num papel onde fez uns rabiscos. Com a mesma falta de expressão e economia de palavras que era costume, disse: -Não tem nada. É tudo problema da cuca. Leve esta credencial e vá para psiquiatria. Mais valium, menos valium, e outras drogas mais pesadas, o meu hóspede foi recuperando. Foi um tempo muito duro, mas como diz o povo, o que não nos mata, endurece-nos e pela minha experiência sabia que senhor Zé iria dar a volta. Foi o que aconteceu quando entrou para os quadros de uma grande empresa de transportes e resolveu voltar a estudar. Estávamos no inÃcio de 1974. E muita coisa estava prestes a mudar.
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