Maria Gabriela de Sá
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« em: Setembro 30, 2015, 18:22:26 » |
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Hoje fui caminhar, seriam 14 horas. Dispunha-me, sem mais, a beber as paisagens verdes circundantes da minha casa, sorver a tarde debaixo de um sol ameno envolto no azul que, lá do alto, dardejava sobre o Santuário de Schoenstatt uma paz serena que se espraiava por toda Colónia AgrÃcola. Sem me deixar enredar por grandes pensamentos ou mesmo pequenas preocupações, só ia indo, um passo atrás do outro, sem destino, procurando apenas descobrir onde iria desembocar cada estrada, num labirinto delas, que se fazia sentir sob os meus pés de sandália ou se teria de inverter o sentido de marcha por ter ido dar a um beco sem saÃda.
Eis senão quando, ainda na ida no ir não sei para onde, na berma esquerda do asfalto que eu calcava tranquilamente, perto de um lago sobre o qual uma meia dúzia de pinheiros resistentes se miram em dias claros, me deparo com uns sapatos pretos de homem com pé pequeno e com uns botins de mulher castanhos de gola alta, ao lado de umas peças de vestuário que não me apeteceu identificar e que, pensei eu, por tudo ser velho ou fora de moda, alguém tivesse abandonado na Natureza a uma decomposição indigna de um bom cidadão. Sem uma máquina fotográfica para ilustrar o meu achado, depois de deixar para trás os restos de alguém e talvez o lixo de si próprio, propunha-me, quando fizesse o caminho de volta, analisar com mais pormenor aqueles cadáveres a fim de tecer uma descrição minuciosa numa crónica que eventualmente valesse a pena escrever se o dia me presenteasse com um bom motivo para isso.
E segui o meu caminho.
No regresso, sempre na mesma passada ecológica de uma tarde bonita, a leveza dos meus pensamentos deste outono ensolarado conduziu-me, embora por outro caminho, ao mesmo sÃtio onde tinha visto aqueles restos mortais de vestuário e calçado, um pouco à frente da rotunda onde a Igreja de Nossa Senhora dos Campos se ergue branca e airosa. Simultaneamente, vejo um homem de capacete e vestido com uma capa à s listas, que talvez à noite sejam florescentes, montado numa mota a chegar perto do lago onde, no asfalto, a estaciona levantando o tripé em que a descansa por breves momentos. Vejo que, decidido e como se procurasse algo concreto, se acerca do lago espraiando os olhos por toda a superfÃcie tentando descortinar que mistérios se esconderão eventualmente no lodo dos fundos. Instantes depois, com toda a calma, sobe para a motoreta e arranca, enquanto eu procuro em vão os sapatos e companhia e elevo, finalmente, os meus pensamentos a um patamar mais ou menos policial:
Moro na zona de Ãlhavo. Aqui, há oito dias um homem e uma mulher estão desaparecidos tendo recentemente as autoridades aventado a hipótese de se estar perante um crime, ao ponto de hoje mesmo se terem encetado buscas na Ria de Aveiro na tentativa de encontrar no mÃnimo o carro do desaparecido.
O homem com quem hoje me cruzei, depois de tantas interrogações sobre o caso em apreço, estaria, com toda a certeza, a tentar dar uma ajuda às autoridades, fazendo um pouco como os bombeiros que hoje terão vasculhado a ria a ver se encontrariam por lá um ou dois cadáveres. E ele, então, não quis deixar de espreitar aquela água pelo mesmo motivo que hoje preocupa tanta gente. Tendo sorte e deparando-se eventualmente com o achado macabro, não podendo colocar-se na categoria dos heróis por motivos óbvios, teria, certamente, o nome nos jornais, uma fama breve, o estatuto de bom cidadão e uma história macabra para contar no futuro.
Já eu, com a cena dos sapatos e da roupa, devo ter tido um subterrâneo pensamento idêntico ao do homem com quem me cruzei durante a tarde do dia 30/9/2015. Afinal, todos gostamos de ser, se não heróis, ao menos bons cidadãos.
A seguir, fui ao Santuário de Schoenstatt rezar uma Ave-Maria
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