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Autor Tópico: O Esfaqueador da Régua  (Lida 66252 vezes)
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José Manhente
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"Ama como a estrada começa" (Cesariny)


« Responder #45 em: Novembro 06, 2015, 19:00:50 »

     Um "penetra" e a confidencialidade das fontes  :news:


     Longe de estar resolvido o caso policial que ficou conhecido como «Esfaqueador da Régua», a imprensa ainda acompanhava o desenvolvimento das investigações operadas pelos Inspectores da PJ. Tanto eles, os inspectores, como as Relações Públicas do Hospital iam pedindo contenção jornalística na publicação de notícias que pudessem lançar para a opinião pública dados errados sobre o presumível autor da agressão e sobre o estado de saúde da vítima respectivamente.
     Era compreensível que M. continuasse incomunicável para o mundo. Embora a intervenção cirúrgica tivesse sido realizada com alguma margem de sucesso, a verdade é que o processo que vai da cicatrização ao restabelecimento é moroso e lento.
    
     Por volta das 17 horas, a luz do dia ia-se sumindo naquele céu cinzento de Novembro. Pelas vidraças do corredor via-se ao longe o balouçar da copa das árvores que dividem os dois sentidos de trânsito na Estrada da Circunvalação. Era um aguaceiro tocado a vento a anunciar uma noite fechada. O silêncio só era interrompido quando passavam funcionários a empurrar os carros de inox da Central de Esterilização ou contentores de recolha de resíduos para a área dos sujos. De vez em quando lá vinha também uma cama com um doente nela deitado e um maqueiro a empurrá-la com cara de pouca vontade para aquilo.
     Didi acabara de chegar no elevador ao piso dos Cuidados Intensivos e deparou-se com um sujeito de gabardina cinzenta a tirar anotações. Sempre que entrava ou saía algum profissional de saúde sacava do bolso um gravador com o logótipo do jornal  diário O Carteiro da Manhã e inundava de perguntas a entrada da enfermaria.
     O pretenso repórter olhou para Didi com curiosidade e disparou:
     - O senhor está aqui por causa do homem que foi esfaqueado?
     - Desculpe mas não sei do que está a falar... - respondeu afastando com a mão esquerda o aparelho.
     - Claro que sabe! É familiar do agredido?
     - Amigo, eu já lhe disse que não sei do que está para aí a falar!
     - Esteja descansado. Eu reservo-lhe a confidencialidade.
     - Hóstia! Não me chateie pá!
     - Mas pode confirmar-me se é amigo ou familiar da vítima?
     Nisto, um segurança privado que estava por ali a fazer a ronda apercebe-se daquele estardalhaço e resolve instar o repórter:
     - Bai-me desculpar cabalheiro, mas o sinhuore teinhe autorizaçoum p'ra fazer cobertura aqui à puorta dos Cuidados Intensibos?
     - Tenho sim.
     - Atoum muostre-me a credencial faichabuore.
     - Pois... não a tenho aqui... só se for lá baixo ao carro de reportagem.
     - Portanto está a dizer-me que noum teinhe nada que garanta a sua permanência neste espaço, certo? - e o segurança aponta-lhe a porta do elevador - Faichabuore bai ter de m'acoumpanhar até à saída.
     - Sim, sim... mas se não se importa deixe-me só concluir o ponto de reportagem com este senhor. - E o repórter aponta o gravador novamente para Didi, até aí bastante surpreso com a insistência do fulano.
     - O sinhuore jornalista noum bai perguntar mais nada aqui! É como ieu lhe digo, desligue lá essa geringuonça e acoumpanhe-me faichabuore até à saída.
     - Mas eu tenho o direito de informar. É uma matéria do interesse público.
     - Não não é! É a devassa da vida privada que o senhor quer publicar! - apontou Didi com o dedo indicador perto do nariz do repórter - Ponha-se a mexer homem! Não adianta vir para aqui inventar estórias da carochinha!
     - Então confirma que conhece a vítima?
     Sem mais salamaleques, o vigilante de ronda puxa-lhe pela parte de trás da gola e em tom ameaçador previne-o enquanto o arrasta para o elevador:
     - Ieu já o abisei! Daqui a pouco a única coisa que o cabalheiro bai counfirmar é que conheceu as cuostas da minha moum! Anduore bioleta!
    
     Didi sentou-se e pode finalmente respirar de alívio. Por onde terá entrado aquele "penetra" dos diabos?! Lá dentro o estado de M. mantinha-se estacionário. Aidinha estava a visitá-lo. Chorosa obviamente... Cry
« Última modificação: Novembro 06, 2015, 22:28:45 por José Manhente » Registado
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outono


« Responder #46 em: Novembro 06, 2015, 19:28:18 »

Preso em directo

O carro de alta cilindrada desceu a Rua Escura e estacionou junto ao número 19, perante a curiosidade dos habitantes. Aida tinha recebido uma mensagem de Francisco Maria, a avisá-la  que ia enviar o seu motorista para a transportar até ao restaurante Portucale, onde a esperava para jantar. Saiu de casa com uma toilete informal como lhe tinha sugerido o director. O chauffeur, impecavelmente fardado, abriu a porta da viatura. Aida entrou com um sorriso. O olhar embasbacadamente discreto das vizinhas acompanhou-a. Durante a viagem até ao restaurante, Aida imaginou os comentários das velhas coscuvilheiras: “há dias foi deixada por um jovem muito distinto; hoje é levada num carrão com motorista; e diz-se que é secretária; deve é ser rameira, daquelas finas, como as que o presidente do FCP procura, cada vez mais novas, nos bares de alterne nos bares de alterne;  pois comadre há muito que eu desconfiava.”
Francisco ,de calça de ganga e de blusão de pele, esperava-a à porta do Portucale. Aida estranhou o novo visual do director,  que via sempre tão soturno enfiado nos fatos escuros. Até lhe pareceu mais novo. Beijou-lhe a mão e conduziu-a até à sala,  onde um empregado indicou a mesa que se encontrava reservada. Quando se sentou Aida espraiou o olhar e ficou extasiada com a vista do velho casario portuense. Ainda não acabara de admirar a paisagem e já a sua atenção estava concentrada na entrada de ostras com limão. Outras se seguiram numa voragem de sabores. Num crescendo de sensações veio um peixe fumado com alcaparras. Uma garrafa de Ervideira Invisível acompanhou as entradas. Um vinho com um sabor único sem cor, feito de uvas pretas, colhidas de noite e espremidas sem pele. Divino. Com certeza obra de deus  feminino. Com a mente um pouco turvada, Aida deu-se a pensar que estava a viver um conto de fadas. Não havia dúvida que gente fina era outra coisa. E se fosse pelo bom gosto gastronómico o director já a tinha conquistado.
A conversa girou à volta das características culinárias da refeição, área onde Francisco também parecia diplomado. Depois derivou para pormenores mais pessoais. Aida ficou a saber que o Francisco tinha ligações familiares a liberais que lutaram durante o cerco do Porto contra o absolutismo miguelista. Fazendo jus ao seu apelido, tinha como antepassado Mouzinho da Silveira, o grande reformador. Daí que Francisco se sentisse orgulhoso do seu passado e se tivesse doutorado em Direito, antes de assumir a direcção da grande editora, de que era um dos accionistas.
Depois das sobremesas e do café, Francisco apressou Aida:
-Temos que ir. Estamos a ficar atrasados para a sessão de poesia do Escritartes  
-Depois de ler alguns textos da Colectânea que me ofereceu, estou ansiosa por conhecer os autores.
Foram recebidos, no Palacete Visconde de Balsemão, por Dionísio Dinis, o anfitrião que surpreendeu Aida pela sua amabilidade. Foi apresentada a alguns autores presentes: Goreti, Alice Santos, Elvira, Helena Costa, Gabriela Sá, José Manhente, entre outros.
-Agora vou apresentá-la a Duarte Rosa o nosso declamador convidado, disse Dionísio.
Viu então um homem alto, elegante, com um sorriso franco e misterioso num rosto sereno. Duarte aproximou-se e cumprimentou-a com dois beijos na face.
-Deixe-me adivinhar. Aposto que é a Aidinha. O doutor Silveira descreveu-a muito bem. É uma honra tê-la presente. Pediram-me para lhe dedicar um poema. E bastou olhar para si para decidir qual vai ser. Abriu um livro da Colectânea e recitou:
Agora resta apenas a saudade nos galhos
enquanto a voz lânguida amanhece só
porque as folhas morreram e com elas as palavras.

Nasce o brilho do sol em notas de música
porque o olhar é teu e o sorriso faz-se fácil
enquanto os lábios humedecem com o toque.

A vida cresce aos poucos
firme pela razão que a alimenta, encantada com o caminho que segue
entre os frutos que se aninham nas mãos e libertam o aroma de
mais um dia.
Poema de Vanda Paz
Aida sentiu-se envolvida por aquela voz forte e bem timbrada. Um arrepio percorreu-lhe o corpo e penetrou-lhe na alma. Os sabor dos lábios suaves que lhe oscularam as faces continuava presente. Voltando um pouco às expressões das suas raízes sentiu que estava com pele de galinha. Sentiu na face o rubor de uma adolescente. Uma lágrima teimava em soltar-se e deslizar pelo rosto borrando a porcaria da maquilhagem. Fixou Duarte e fez um sorriso de agradecimento. Uma estranha sensação crescia dentro de si. Já não se via a Aida que sempre fora, mas não entendia que Aida era.
A recitação continuou muita aplaudida pelos presentes. Durante uma mudança de poema viu entrar duas figuras algo desenquadradas do ambiente. Pelo expressão fechada, teve uma sensação desagradável . O mais velho pediu desculpa pela interrupção com um tom monocórdico. Abordaram Duarte. Este mostrou um ar surpreendido:
-É Duarte Rosa?
-Sim , sou eu!
Somos os inspectores Malange e Contreiras da PJ. Estamos a fazer uma investigação sobre o ataque a um homem em Peso da Régua. Pelas nossas informações é suspeito de ser o agressor.
A rádio que transmitia o evento continuava no ar.
-Perdão. Só pode ser um engano. Ouvi falar no assunto, muito desenvolvido no Carteiro da Manhã, mas há mais de uma semana que não vou para essas bandas.
-Pedimos desculpa, mas tem de nos acompanhar para interrogatório.
Francisco aproximou-se e cumprimentou os polícias. Parecia mover-se bem no meio. Disse uma palavra de ocasião a Duarte antes deste ser preso e levado para ser ouvido por um juiz.
-Aidinha temos de sair imediatamente. Acabei de tomar conhecimento de que o jovem agredido em peso da Régua, é Matias ou M como gosta de ser conhecido. Ouvi falar no assunto mas não liguei. O Carteiro da Manhã é pasquim com o qual não perco o meu tempo. Vamos para o S. João.
Aida perdeu a fala e a compostura. Pareceu-lhe que o sangue lhe fugia do corpo. Francisco amparou-a :
-Respire fundo. Tudo há-de correr bem. Preciso do seu apoio.
-Já estou melhor, podemos ir. E Duarte? Depois veremos. Isto é mais urgente.
Enquanto faziam o percurso para o hospital Aida lembrou-se que M ainda mexia consigo. Estava disposta a fazer tudo para o ajudar. Nem que tivesse de dar uma parte de si.    
« Última modificação: Novembro 06, 2015, 22:59:08 por Nação Valente » Registado
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« Responder #47 em: Novembro 07, 2015, 01:23:07 »

          ( Estranhos contornos no caso do Esfaqueador da Régua)
 
ÚLTIMA HORA

           A última notícia do Carteiro da Manhã sobre o caso dos Esfaqueador da Régua  dava conta da detenção para interrogatório no Palácio dos Condes de Balsemão, no Porto, de Duarte Rosa, no último Sarau de Poesia de vários autores, no dia 6 do corrente mês de Novembro.
        A acção teria sido levado a cabo pelos Inspectores Malange e Contreiras, na presença de várias pessoas, entre as quais Aida, ex-secretária de M. e agora ao serviço do Director da Multinacional onde os três trabalham.
          Em face disto, o caso adquire agora contornos mais estranhos, quase bizarros, por o Jornal da Noite da Sic, junto de fontes ligadas ao processo, ter apurado que os Inspectores citados nunca terão efectuado tal diligência.
          Assim, parece estar-se em presença de uma máfia obscura que, além de se dedicar ao esfaqueamento, talvez em série uma vez que se receiam novos ataques, age com particular requinte da duplicação das pessoas, como tem vindo a ser o caso de Duarte Rosa e dos citados Inspectores Malange e Contreiras.
          De referir que o Duarte Rosa, depois de ter sido levado pelos dois indivíduos que se faziam passar por Inspectores da PJ, reapareceu em casa, sem tronco nu, e sem se lembrar de nada.
          De referir também que,  das pessoas com quem a SIC falou, e que estariam presentes no Palácio dos Viscondes de Balsemão, nenhuma delas se terá apercebido muito bem o que se terá passado, uma vez que tudo decorreu com precisão cirúrgica e com a maior descrição.
          Aidinha, depois de tudo, foi encontrada sozinha à cabeceira de M., após Francisco Maria ter ido à casa de banho onde se demorou longo tempo, tendo voltado ao carro para junto do motorista que o aguardava igualmente perturbado e sem dizer coisa com coisa.
          A mulher, ao ser inquirida sobre os polícias em questão  acerca do que se passou entretanto, não se soube situar no meio dos acontecimentos e aparentava, de algum modo, estar baralhada.
          Segundo opinião de reputados ufologistas, podemos estar em presença de um ataque de extraterrestres,  cujo objectivo ninguém pode ainda precisar e que estará já a levantar uma onda de medo no país.
          As autoridades afirmam estar atentas ao caso e tentam serenar a população afirmando não haver razão para alarme
          Entretanto, Matias Azevedo contínua em estado grave, e Aidinha já montou acampamento à beira dos cuidados intensivos, de onde ninguém tem conseguido removê-la.
          Voltaremos a esta notícia se houver novos desenvolvimentos.
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Dizem de mim que talvez valha a pena conhecer-me.
José Manhente
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"Ama como a estrada começa" (Cesariny)


« Responder #48 em: Novembro 07, 2015, 17:37:05 »

                         Sinais Vitais e outras evidências

     Ao quinto dia após a intervenção cirúrgica M. começara a dar sinais de vida. De estado vegetativo passou a estado semi-lúcido, isto é, já não respirava artificialmente, revirava ligeiramente os olhos, mexia os dedos das mãos e dos pés e gemia de dores. Dada a melhoria do estado geral de saúde, e afastado o pior cenário, M. passara por isso para os Cuidados Intermédios. O regime de visitas ficara no entanto restrito a uma só visita dada a mediatização do caso tanto na justiça como nos órgãos de comunicação social. Por motivos de segurança do edifício, e para evitar o acesso a novos "penetras", a direção de Logística decidiu extraordinariamente colocar à porta da enfermaria um segurança durante o horário das visitas. Mas foi pior a emenda que o soneto! Isto porque na cama ao lado de M. estava um indivíduo de etnia cigana, o que recrudesceu a forçagem para aceder ao local. Cá em baixo, no átrio principal, junto aos torniquetes rotativos, os porteiros não tinham mãos a medir com tantos ciganitos a passar de um lado para o outro das barreiras e as mães dos miúdos sentadas ali à frente deles, a falar umas com as outras e sem ligar mínimo a nada do que os petizes faziam. Havia pacotes vazios de bolachas, de sumos e de batatas fritas espalhados pelo chão e as coitadas das senhoras das limpezas a dar ao zarelho da esfregona para minimizar tamanha sujidade. O patriarca romani também ali estava sentado ao lado delas. Todo vestido de preto, incluíndo chapéu, com barbas brancas e com as mãos sobre a bengala e a segurar o queixo. Bocejava de vez em quando, despiciendo por mais um internamento de um dos elementos do clã. Ele que a tantos já assistiu ao longo da sua vida, e contando com nascimentos, via naquela espera mais uma banalidade.
     Porém, os homens mais novos, na pujança da vida, insistiam para entrar à viva força, como se da sua entrada resultasse a melhoria significativa do estado de saúde do seu "primo". O nível de altercação subia de tom e o porteiro cada vez mais aflito ligou para o posto da PSP da Urgência, agente que em dois minutos ali se apresentou a perguntar se havia azar.

     - Ai sinhore agenti, é aqui o home que nos deixa passari!
     - E com razão amigo, vocês tem que se capacitar que só tem direito a uma visita se tiver cartão para o efeito. Vocês não tem mais nada que fazer na vida? Tipo, os negócios na feira ou assim?
     - Ai sinhori agenti, nós semos probes!   fazemos vida de feira, é uma infelizmência!
     - Então nunca trabalham, certo? - Sorriu o polícia com alguma ironia à mistura.
     - Ai! Comé que se pode trabalhari? Passamos a vida acampados à porta dos hospitais por causa dos primos e das  primas!      
« Última modificação: Novembro 07, 2015, 18:40:23 por José Manhente » Registado
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« Responder #49 em: Novembro 07, 2015, 19:14:58 »

Desmentido em português suave

Quando a minha velha secretária se reformou, pedi a M, que procurasse, no âmbito das funcionárias da empresa, uma que lhe merecesse confiança para desempenhar o cargo. M, enviou-me, com óptimas referências, a Aidinha. Veriquei que tinha uma secretária, cuja competência, era à prova de bala, e que havia recebido dos deuses uma beleza física acima da média. Conheço a preocupação de M em me agradar, mas daí a dispensar-me a sua secretária pessoal, com tantos atributos, deixou- me com a pulga atrás da orelha. E a agressão a M, mais que a pulga fez-me acreditar num “pulgal”. E a prisão de Duarte como agressor fez-me acreditar numa conspiração de parasitas. E assim, com a nomeação de uma nova secretária, vi-me metido por M, numa história, em que ele se inscreveu como protagonista.
Não sou homem de desprezar desafios. Meteram-me ou deixei-me meter nisto e vou em frente. Na altura da prisão de Duarte, tive oportunidade de informar o inspector designado para o caso, que vestirei de novo a minha toga de advogado, para assumir a sua defesa. E ainda hoje estive presente na continuação do interrogatório. Duarte está bem e seguro da sua inocência. Todo este processo, estou seguro, não passa de uma cabala.
O que se está a passar com a prisão de Duarte, em termos informativos, é deveras preocupante. Já não bastava o Carteiro da Manhã a inventar notícias, vejam bem, vem agora também a circunspecta SIC a divulgar notícias falsas, eventualmente sopradas por uma fonte ligada ao processo, num desrespeito pelo segredo de justiça. O que me deixa transtornado é que essa informação, é completamente disparatada. Ate falam em intervenção de extraterrestres. Mas alguém acredita nessa peta. Tomam os leitores por atrasados mentais. Depois de conhecerem a Troika, não há, outros ETs que os assustem.
O meu constituinte continua preso e tudo indica que será, em breve, libertado. Não há neste momento qualquer indício que o possa acusar de interferência na agressão a M. Garanto, com conhecimento de causa, que as notícias divulgadas sobre Duarte, sobre a Aidinha e sobre a minha pessoa são um disparate que só pode vir de uma agência de contra informação e ao serviço de interesses obscuros. Possivelmente, querem desviar a atenção dos verdadeiros culpados, de todo estes imbróglios. E, decerto, que querem baralhar os leitores.
A PJ vai continuar as investigações com seriedade. Exijo o apuramento de toda a verdade. Outros suspeitos estão na lista dos inspectores. Ao que sei, todas as hipóteses estão em aberto. O inspector, que conheço de ginjeira, é, desde sempre, um adepto obsessivo de histórias policiais. Tem como referência a figura mediática de Poirot. Tirem o cavalinho da chuva. Portanto, ninguém, mesmo ninguém, deixará de ser investigado: uma suposta namorada e os seus pais, os seus principais amigos, uma personagem X que escreve cartas anónimas e até a menina Aida.
O processo “Vinho de Sangue”, agora estão na moda nomes pomposos, ainda vai fazer correr muita tinta e ocupar quilos de papel. E, mau grado, a perturbação que me trará à minha vida profissional, vai fazer-me reviver os bons tempos de advocacia, como o famoso FP25, onde apliquei toda a minha sapiência jurídica. A minha vida, que estava uma pasmaceira, desde que a Leonilde se foi atrás do personal trainer, ganhou outro fôlego. E com a Aidinha a dar-me oxigénio vai ser um ver que te avias. Ainda não me faz festas ao cão, não me dá banho ao gato, nem me ensina o canário a cantar, mas demos-lhe tempo. Sou paciente.
 
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« Responder #50 em: Novembro 07, 2015, 19:42:37 »

Mas que grandes voltas. Vai dar romance policial!
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #51 em: Novembro 07, 2015, 21:29:42 »

          (De novo o caso do Esfaqueador da Régua)


          Contínua envolto em mistério o chamado caso do Esfaqueador da Régua, depois das notícias contraditórias que têm vindo a lume, com a PJ a afirmar não ter procedido à detenção de Duarte Rosa. E isso foi confirmado pelo Tribunal da Comarca da Régua, onde aconteceu a tentativa de homicídio, uma vez que Duarte não foi lá presente para a aplicação  de quaisquer medidas de coação como deveria ter sido
            E, assim, se, como têm vindo a público, Duarte Rosa se encontra alegadamente longe do seu domicílio, ou detido, que é o que agora se discute,  só pode estar sequestrado em qualquer lugar desconhecido, havendo assim, em vez de  só uma tentativa de homicídio, mais três  crimes, um de sequestro,  na pessoa de Duarte Rosa,  e dois  de falsa qualidade e usurpação de funções, em primeira análise. Mas sobre isto a PJ não prestou qualquer esclarecimento.
 
          O que é de realçar é que as declarações Francisco Maria enfermam de uma contradição, ao que parece insanável, e que já levou a PJ a trabalhar junto dele mais uma linha de investigação.
          Na tentativa de deslindar este imbróglio, a Directoria do Porto da PJ, já com uma equipa de investigadores alargada, procedeu à audição de Dionísio Dinis,  uma vez que das pessoas que estavam no Sarau era a que se apresentava em melhor estado de lucidez,  sobre o que se terá passado. Ele descreveu os dois Inspectores como sendo dois homens caucasianos à roda dos 45 anos, de estatura média, pele clara, um de olhos castanhos e outros verdes.
          Já Gaby e os pais, na Extensão da PJ de Vila Real, interrogados sobre os Inspectores Malange e Contreiras por uma Inspectora,  afirmavam que um teria à volta dos 50 anos, cabelo grisalho e moreno. Já o outro, não havia nada que enganar por se tratar de um jovem com cerca de 30 ou trinta e poucos anos,  de raça negra, o que efectivamente corresponde à realidade, segundo se lê num comunicado da PJ do Porto.
          De acordo com o que o Jornal da SIC apurou, Duarte Rosa não foi detido como suspeito pelos dois Inspectores de Vila Real porque o seu álibi é sólido, depois de o mesmo, conforme bilhete que consta no processo, ter sido confirmado por elementos da claque dos dragões que tinham viajado no mesmo avião.
          A boa notícia é que M., aos poucos, está a sair do coma. E o que circula por aí é que o fígado transplantado em M. terá pertencido de facto a um indivíduo de etnia cigana,  morto numa rixa à navalhada pelo que agora partilha os cuidados intermédios com Matias. E esta delicada situação se, por agora, já perturba o estado de saúde de M., com a barulheira que se faz sentir por todo o lado, imagine-se quando os ciganos descobrirem que Matias é agora o portador do fígado de um dos seus, e que a SIC deseja não sejam de facto maus fígados.
          Assim, no ambiente do Hospital,  vive-se agora quase num estado de sítio, com polícias atentos ao homicida e com seguranças por todo o lado. Já para não falar num batalhão de jornalistas insistentes a questionarem tudo e todos sobre mil e uma coisas ligadas ao Esfaqueador da Régua.
          Entretanto, o irmão de M. já saiu de Luanda a caminho do Porto e Gaby também já foi avisada do regresso de M. ao mundo dos vivos. Oxalá ela vá a tempo, porque Aidinha, um bocado como os ciganos, não tem arredado pé do local.
« Última modificação: Novembro 08, 2015, 21:56:01 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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"Ama como a estrada começa" (Cesariny)


« Responder #52 em: Novembro 07, 2015, 22:20:31 »

                       Longa se torna a espera

     Ao cair da tarde daquele dia, M. continuava prostrado na cama, seguindo com o olhar os ponteiros do relógio de parede da enfermaria. Por prevenção e pelo facto de estar sempre deitado na mesma posição, o médico que estava com o seu processo clínico decidira mandar colocar um colchão anti-escaras, melhorando assim o conforto das carnes e dos ossos. Mas nada seria comparável ao conforto espiritual se visse Gaby mais uma vez.
     Até o jantar dietético pfff!, servido morno e acompanhado por um copo com água, mais uma maçã insonsa e rija como chifres de rinoceronte, não era propriamente um consolo alimentar. Estava deserto por um prego em prato, com batatinhas fritas e ovo a cavalo! Ah, e um fino bem tiradinho logo ali ao lado! Talvez que fosse a primeira refeição que M. iria fazer logo que tivesse a devida alta hospitalar. No entanto, enquanto assistia ao final do Preço Certo, já fartinho de ouvir o gordo  :help: e o seu "Espetáááculo!", M. ia chafurdando-se num rol de dúvidas:
 «Onde raio se meteu a Gaby? Sabe ela do meu estado? Às tantas nem apareceu ao encontro marcado em Peso da Régua. Porque não dás sinal de vida morena?».
     Chamou a assistente operacional e pediu-lhe que lhe chegasse o telemóvel e o auricular. Depois pediu que baixasse um pouco o volume da televisão e agradeceu. Sintonizou uma estação de rádio com música dos anos oitenta e serenou. Fechou as pálpebras e começou a ouvir a voz de Morrisey:    

«Why do you come here?
And why do you hang around?
I'm so sorry
I'm so sorry
Why do you come here
When you know it makes things hard for me?
When you know, oh
Why do you come?

Why do you telephone?
And why send me silly notes?
I'm so sorry
I'm so sorry
Why do you come here
When you know it makes things hard for me?
When you know, oh
Why do you come?

You had to sneak into my room
"Just" to read my diary
It was just to see, just to see
All the things you knew
I'd written about you
And so many illustrations

I'm so very sickened
Oh, I am so sickened now

It was a good lay, good lay
It was a good lay, good lay»


E com este Suedehead uma lágrima teimosa escorreu pelo rosto de M.
« Última modificação: Novembro 07, 2015, 23:03:11 por José Manhente » Registado
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« Responder #53 em: Novembro 08, 2015, 21:26:10 »

Agora que M. está a recuperar, tenho algum receio de me aproximar do seu leito. O pobre não me conhece de lado algum e aquela lambisgoia da Aidinha não lhe larga os pés da cama. Várias vezes, na execução dos meus trabalhos, fiz um desvio por aquelas bandas, disfarcei o interesse, bati à porta, muito solícita, perguntando se estava tudo bem, se não precisavam de nada. A rapariga já por várias vezes me olhou com má cara, como se lhe tivesse interrompido qualquer coisa.
M. dormia sossegado, nem deu pela minha aparição de hoje. Aidinha quase deu um pulo quando eu entreabri a porta. Isto é muito estranho. Fosse eu uma médica ou ao menos uma enfermeira e haveria de vir mais vezes para averiguar bem este estranho comportamento. Ainda que fosse para lhe dar uma injeção de água destilada ou de soro no cateter do soro... Há quem diga que as enfermeiras, quando lhes parece que os doentes se queixam por tudo e por nada, lhas dão... Não faz mal e faz parecer que são muito preocupadas rsrs. Diz-se... Mas, como tantas vezes, deve ser boato. Mas que aquela lambisgoia é estranha, é! Para estar aqui sempre deveria ter cara de apaixonada ou, no mínimo, de preocupada. Mas não é isso que me parece. Tem olhos de raiva ou assim a modos que ódio... não sei... estou para aqui a inventar decerto. Mas que vou pedir a alguém que me ajude, lá isso vou. Isto não me cheira bem.
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"Ama como a estrada começa" (Cesariny)


« Responder #54 em: Novembro 10, 2015, 19:08:36 »

                               A queda de um governo


     Podia ser um dia como todos os outros mas não. Corria na Assembleia uma moção de rejeição ao Governo Constitucional e M. assistia pela televisão à votação num plenário em tudo inusitado. Uma frente de esquerda, com partidos minoritários que, juntos, reuniam uma soma de deputados que lhes conferia maioria parlamentar e que decidiram, através de acordo pós eleitoral, derrubar aquele governo de direita, que contava 10 dias em funções. O mais curioso de tudo foi ver o primeiro-ministro a lembrar ao hemiciclo que saía sim, mas após uma vitória nas urnas.
     «Coisa mais bizarra!» - pensara M. - «É estranho ver uns a dizer que ah e tal, que sim senhor, pois então, é preciso virar a página do "austeritarismo" e outros do outro lado a retrucar, "Pífias!" que essa geringonça vai levar-nos outra vez à bancarrota é o que é!». E a caravana entretanto ia passando pelo meio dos ruidosos jornalistas nos corredores de São Bento... Ao fundo da escadaria do parlamento duas manifestações de apoio. Uma situacionista e a outra de natureza sindical. Havia palavras de ordem e muitos estados de alma.
     «Puxa! Até aquele partidozeco representado por um só deputado, que dizem tratar os animais como pessoas, votou pela moção porque considerava que a política do governo era a de tratar as pessoas como animais... Enfim, vá-se lá entender esta lógica da política.»  - Concluira M. já cansado de tanta feira de vaidades.
     M. suspirava à espera que lhe dessem finalmente alta para ir de baixa para casa. De Gaby nem sinal. O mais certo era ela ter desistido dele. 

« Última modificação: Novembro 11, 2015, 00:12:24 por José Manhente » Registado
Maria Gabriela de Sá
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« Responder #55 em: Novembro 11, 2015, 14:30:59 »

         ( Audição de M.)


          Um dos primeiros actos de M., após a sua lenta saída do coma, foi responder às perguntas que os Inspectores Malange e Contreiras lhe dirigiram, ali no leito onde ele jazia soerguido na cama, sob os lençóis brancos com o símbolo do hospital.
          Visivelmente mais magro, recebeu a visita da PJ de manhã, depois de o barbeiro da casa lhe ter desfeito a barba que se lhe plantou na cara desde o fatídico dia da tentativa de homicídio de que fora vítima, ainda ninguém sabia com que móbil. Se, por um lado, parecia ter sido uma questão passional, por outro havia, agora mais do que nunca, dúvidas resultantes de uma contestação interna na liderança no Laboratório Farmacêutico de que Francisco Silveira era Director mas que, na verdade, tinha em M um forte opositor,  de quem se dizia, seria o novo dirigente no país.
          - Bom dia, Sr. Matias, como está? – Perguntou O Inspector Contreiras, com Malange a fazer sua a mesma pergunta do colega.
          - Melhor, felizmente. O pior parece ter passado. Um transplante de fígado não é o mesmo que uma intervenção ao apêndice. Mas parece que ainda não vou desta!
          - Claro. Tem ainda muitas coisas a fazer por aqui. E, pelos vistos, pessoas a rezar a Deus pela sua recuperação é o que não falta. A começar pela Aidinha, que não lhe larga aqui a porta – disse o Inspector Malange com um sorriso.
          - E a Gaby de Ribalonga – acrescentou o colega, igualmente com um sorriso cúmplice.
          Matias esboçou um riso, quase difícil, com o novo fígado ainda mal adaptado ao senhorio,  enquanto amparava a barriga que, com   a movimentação dos músculos do rosto, lhe   arrepiara a cicatriz  ao ponto de lhe provocar dor.
          - Também nos deparámos com o seu irmão, lá fora no corredor, agora que o senhor foi transferido para a enfermaria.
          - É verdade. O João teve que vir de Luanda para me dar algum apoio. Veio sozinho, deixou lá a família. Só complicações ocasionadas por um louco varrido.
          - Bom, é por isso que estamos aqui – começou Contreiras. Diga-nos por favor uma coisa: tendo-se o individuo identificado como Duarte, parece, até prova em contrário, que se tratou de um indivíduo a fazer-se passar por ele, aproveitando o facto de o Matias só o ter visto, e mal, no passeio de Carrazeda.
          - É verdade – acrescentou Malange. Além de que Duarte estaria a regressar, nessa mesma manhã, de Israel.
          - A sério?
          - Claro – retorquiu Malange. Há alguma coisa que tenha captado a sua atenção? Por exemplo, sotaque, altura… Como foi a abordagem do indivíduo?
          - Ele identificou-se. E, depois de algumas palavras circunstanciais, passou à ameaça, dizendo que a Gaby era dele desde a adolescência. Nem me deu tempo a reagir…
          - Mas e o sotaque? – Perguntou Contreiras.
          - Parecia do norte, mais concretamente do Porto.  Realmente tinha pouco de S. João da Pesqueira…
          - E reparou nalgum sinal que ele, eventualmente,  tivesse na cara, ou nas mãos? O resto estava tapado… perguntou entretanto Malange.
          - Não, de facto não me apercebi. Ele apertou-me o pescoço com a mão direita e a seguir esfaqueou-me não sei quantas vezes.
          – Cinco, para ser mais preciso, tal como consta no processo. E sabe que acabou por nos dizer que o homem era canhoto? Muitíssimo importante esse pormenor – acrescentou o Inspector Malange.
          - Ainda bem…. Quase gemou M. aparentado algum desconforto. Por favor, estou um bocado cansado. Ainda precisam mais de mim?
          - Por hoje não – disse Contreiras. Quando voltarmos a falar já deve estar em casa a recuperar. Agora vamos embora. As suas melhoras, senhor Matias Azevedo.
          - Será que podem pedir ao meu irmão para entrar, por favor? Preciso de lhe pedir umas coisas pessoais para ter aqui no hospital durante o tempo que cá estiver.
          Quando João entrou, Aidinha vinha atrelada a ele como uma viúva negra a adorar o seu cadáver preferido.
          - Temos de ver o que faz esta criatura aqui há estes dias todos. Isto não me está a cheirar lá muito bem e, pelos vistos, dá-se lindamente com a auxiliar de limpeza!... Será que as duas andam a tramar alguma coisa?
          - Não sei -  retorqui Contreiras,  olhando a rapariga de esguelha...

 
« Última modificação: Novembro 12, 2015, 12:22:41 por Maria Gabriela de Sá » Registado
Goreti Dias
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« Responder #56 em: Novembro 11, 2015, 21:17:15 »

Lá que isto promete, promete...
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« Responder #57 em: Novembro 11, 2015, 22:04:50 »

Pela parte que toca a esta casa, apostamos em longa vida deste conto para ser vertido em livro. Assim os escribas se disponham a tal.
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outono


« Responder #58 em: Novembro 13, 2015, 15:10:01 »

Estranha visita

Maria estava na cozinha a sacrificar um coelho para o almoço, com a preciosa ajuda de Gaby. A jovem interessava-se por actividades culinárias, o que deixava a sua mãe descansada e orgulhosa. Na sua visão do papel da mulher (ou do homem) estes ,deviam adquirir todas as competências, para poderem enfrentar a vida com a máxima autonomia. Maria enquanto espetava  a faca na barriga do coelho, lembrou-se do estribilho da canção, D. Laura, de Miguel Araújo, no momento em que se ouviu a sineta do portão.

Vai, canta até ser dia/ Que um dia há de ser dia/ E tu vais ser alguém /Que é tal e qual a mãe /Um olho na novela/ O outro na janela, um dia vais/ Ser tão Dona Laura como ela/ Aproveita agora/ Que há de chegar a hora/ Que não poupa ninguém /Vais ser igual à tua mãe /Com a filha pela trela/ Repete-se a novela, um dia vais/ Ser mais Dona Laura do que ela.

- Gaby vai ver quem é, já que o teu pai quando está no escritório, absorto nas contas da quinta, não se apercebe de nada, disse Maria.
Gaby lavou as mãos do sangue do coelho e dirigiu-se ao portão.
-Quem está aí? perguntou
-Gente de paz, respondeu uma voz áspera e arrastada.
Gaby entreabriu o portão, e entrou-lhe pela retina, sem pedir licença, uma figura esguia e indefinida. Á primeira olhadela pareceu-lhe ser Duarte. Mas não, não podia ser Duarte. Nunca aparecia de supetão e sem se identificar. Começou a desmontar a estranha figura: usava um boné enterrado até aos olhos, escondidos atrás de uns óculos escuros. A boca era fina como uma lâmina e ligava-se à orelha através de uma cicatriz. Mais parecia um esgar. O corpo magro, não se sentia confortável, dentro de um fato comprado, sem medida, na feira da Régua. Calçava uns ténis de contrafacção, algo enlameados. Naquele breve segundo, sentiu-se prisioneira de um estranho arrepio.
-Boa tarde menina.  O senhor  Zé Ferreira está?
-Está sim. Quem devo anunciar?
-Navalhas.
-Navalhas quê?
-Navalhas, simplesmente.
Gaby conduziu-o até ao escritório. Zé Ferreira recebeu o visitante com surpresa e com uma expressão facial de preocupação. Mandou-o entrar e pediu a Gaby que os deixasse a sós. Esta, ao afastar-se, ouviu o pai dizer num tom irritado: “disse-lhe para não me procurar aqui”. Depois conseguiu perceber algumas frases soltas: “o melro ainda canta”, “acabar o trabalhinho” , “a sua inteligência está na proporção inversa do seu tamanho”, “encomendei-lhe um susto, nada mais”. Gaby foi-se afastando na direcção da cozinha com um aperto no peito. Maria tinha estraçalhado o coelho e estava a cozê-lo em lume brando.
-Que se passa filha, parece que abusaste do pó de arroz? disse Maria.
-Mãe, conheces algum Navalhas?
-Nunca ouvi por aqui esse nome!
-Foi como se apresentou o sujeito que nos veio visitar e que pediu para falar com o pai. Tenho o pressentimento que não é boa rês. Ainda me sinto arrepiada.
-Deves estar a exagerar. O teu pai não se relaciona com malfeitores.
-Assim seja, mãe.
O coelho dançava a última dança, impulsionado pela agitação fervilhante da água, na companhia da cebola, do alho e dos ingredientes secretos, da receita do livro pessoal de Maria. Soaram passos apressados na sala.  Francisco despediu a inesperada visita num tom agressivo. “As contas estão encerradas e não quero voltar a vê-lo. Se aparecer por aqui mando prendê-lo.” Veremos”, disse o Navalhas.
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Maria Gabriela de Sá
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« Responder #59 em: Novembro 13, 2015, 17:31:19 »

(Finalmente a visita de Gaby)


          Mal recebi a mensagem de M. dando conta do seu regresso ao mundo dos vivos, o meu contentamento explodiu na decisão de, na manhã seguinte, rumar ao Hospital de S. João no Porto. Antes de qualquer outra consideração que tivesse a Aidinha no centro, Matias tinha sofrido um ataque bárbaro, no também chamado “Crime do Vinho de Sangue”,  e estava mais do que  na hora de lhe fazer uma visita. Tinha-lhe prometido isso na resposta à sms que ele dedilhara, provavelmente ainda com grande esforço, mal abrira os olhos a seguir ao coma.
          Como a mala continuava ainda feita desde o primeiro dia, reformulei-a com umas peças mais frescas, já que o Verão de S. Martinho nos tinha presenteado com dias de sol resplandecente. Além de que o desejo de visitar M. no seu leito do hospital se tornou de repente mais premente,  após a estranha visita ao meu pai e enquanto eu própria já ia acumulando nas costas o peso da culpa a que o velho parecia imune.  
          Quando saí de casa,  o nome Navalhas e aquela estranha figura marcada a cicatrizes na cara não me saía do pensamento. Já para não falar da conversa entrecortada que a fechadura da porta do escritório tinha feito chegar até mim de véspera e antes do coelho estufado, cujo sabor se perdeu no meio de muitas interrogações.
          Galguei o IC5 mais depressa do que deveria,  como uma nova Michele Moutton. Isso apesar dos desvios que as recentes obras de Santa Engrácia transmontana me obrigaram a fazer e quando me sentia bem mais carregada nos pensamentos do que a minha maleta ia de roupa. Imaginar que o meu pai pudesse estar na origem das navalhadas desferidas em M. e no seu recente fígado vindo de um cigano deixava-me estarrecida e com medo dele. De facto,  sempre o imaginara uma criatura sem pinta de maldade e saber que eu podia ser a causa dos seus desafectos com o Matias era sobretudo intrigante. Se havia algum obscuro motivo para ele encomendar, como me pareceu depois daquela conversa com o Navalhas, um susto daqueles ao M., era aterrador. Imagine-se que ele queria mesmo um homicídio com todas as letras! Tudo me parecia demasiado macabro e surreal para ser verdade.
          Quando estacionei o carro no parque subterrâneo do hospital e subi a seguir à enfermaria, antes de me dirigir à cama nº 12, a primeira pessoa a ver, a conhecer também visto que nunca lhe tinha colocado os olhos em cima,  foi a Aidinha embevecida, a reter entre as suas as mãos de M. alisando-lhe a coberta da cama entretanto,  mal viu o rapaz a dirigir o olhar para mim mal entrei.
          A visão da rapariga, como é óbvio, não me deixou a pular de contentamento…Mas, depois das últimas suspeitas, entre aturar uma pegajosa que me cobiça o pretendente e um pai que se mancomuna com um Navalhas para o assustar e quase o manda para o céu no comboio da Régua, o meu discernimento não teve outra escolha senão engolir a sirigaita!
           - Debrucei-me,  depois na cama de M.  e dei-lhe um beijo no rosto, barbeado de novo com esmero pelo escanhoador  de serviço, enquanto lhe perguntava como se sentia.
          Respondeu-me  com um “mais ou menos” convicto de não ser agora que iria engrossar as hostes do além. E, após a apresentação de Aidinha,  a que eu não deixei de dar na cara um beijo de Judas, a primeira coisa que disse ao rapaz foi lamentar o nosso azar daquele dia na Régua.
          - Então, M? – Má altura escolhemos nós para enterrar machados de guerra!
          - É verdade – respondeu ele sorrindo. Mas, deixa lá! Ao menos ganhei um fígado novo.
          - Que seja ao menos imune à cirrose. Assim, quando saíres daqui, sempre podemos ir comemorar de novo à Régua com um Cabeça de Burro colheita 2009.
          - Pelo amor de Deus Gaby, nem por sombras! Aquela terra para mim só poderá ser maldita! E tu tens cá um humor negro, deixa que te diga! -  E riu-se, no esgar de uma dor vinda da barriga soturada a ponto de cruz.
          Nessa altura senti de novo a eventual culpa do meu pai às costas e,  com uma tímida ternura,  tomei nas minhas as mãos de Matias, que a Aidinha já tinha libertado há um bom pedaço,  acariciando-as. Não era grande coisa, mas,  por agora, antes de ser uma apaixonada de cair para o lado e fazer as maiores loucuras por amor,  era o que se podia arranjar.
          Quando vim embora, Aidinha lançou-me um olhar de medusa, que embateu frontalmente no meu sorriso de felicidade.
« Última modificação: Novembro 20, 2015, 14:59:06 por Maria Gabriela de Sá » Registado
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Bom dia. Para todos um FigasAbraço
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Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
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E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
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Boas leituras!
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Boa noite!
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Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
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Boa noite feliz para todos.
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Boa tarde a todos.
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Olá para todos!
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Olá para todos!
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Boa feliz noite para todos.
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