Nação Valente
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outono
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« em: Julho 27, 2019, 20:00:45 » |
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Aparecia todas as semanas na aldeia para vender lotaria. Deslocava-se num bicicleta “pasteleira†que o transportava pelas localidades do concelho. O meu avô era um dos seus clientes regulares. Quase sempre comprava uma fracção, a que chamava “cautelaâ€. Quase sempre não tinha qualquer prémio.
De vez em quando, ganhava a "terminação". Mas o meu avô persistia na sua ténue esperança de um dia ganhar a “taludaâ€, o prémio mais chorudo. Sonhava ter uma velhice mais risonha, distante da pobreza assumida como destino comum à grande maioria da população, sem reforma. Na aldeia, a Casa do Povo dava uma espécie de esmola mensal de cem escudos, a dois ou três dos pobres dos mais pobres. E apenas quando um deles morria, era atribuÃda a outro.
O vendedor de lotaria, ou “cauteleiro†era uma figura patusca e simpática. Homem simples, ou talvez “simplório†como eram conhecidas as pessoas um pouco diferentes da bitola comum, apresentava sempre uma atitude calma, no sentido de encarar a vida sem preocupações ou ambições. Era o que se chamaria hoje o homem sem stress.
Não me recordo do seu nome, mas tenho bem presente na minha memória a sua alcunha, que casava bem com a sua imagem. Chamavam-lhe o “tumba†com ironia e carinho, em consequência de vender sempre jogo “brancoâ€. Apesar disso, o meu avô, entre duas graçolas, lá pegava no molho de bilhetes, apreciava os números e fazia a sua escolha. Quem sabe se um dia o “tumba†não trazia a sorte “grandeâ€, que a “pequena†sempre estivera garantida.
Numa das suas visitas semanais, deu-se a coincidência do meu avô estar na taberna, com outros conterrâneos, que também adquiriam lotaria, quando o “tumba†chegou. Nenhum dos presentes estava no seu melhor dia, porque quando o vendedor de lotaria anunciou que trazia a “taluda†todos fizeram um sorriso descrente e irónico e disseram a uma voz, como que impulsionados por um pensamento comum. Qual taluda? Estamos cansados de ser contribuintes, hoje não compramos nada.
Insistiu mais uma vez o “cauteleiro†que sentia uma fé especial. Como ninguém se movia chamou o cão do taberneiro chamado “piloto†e entegrou-lhe a lotaria, que este logo agarrou com os dentes, como osso apetecÃvel. -Vai, leva essas centenas de contos ao teu patrão. O cão, bem mandado, talvez até bem informado, assim fez, mas em vão. Com um brilho de tristeza nos olhos, devolveu o jogo ao vendedor da lotaria.
O “tumba†montou-se na sua bicicleta e continuou caminho até aos postos fronteiriços da Guarda Fiscal, onde tinha clientes certos, que lhe compraram o jogo todas as semanas. Quando andou a “roda†isto é o quando foi o sorteio, houve uma agradável surpresa. O bilhete que compraram tinha ganho o primeiro prémio.
O meu avô e os outros protagonistas que se recusaram a comprar lotaria, no único dia em que o “tumba†lhes pôs à frente a “grandeâ€, reagiram com tristeza, mas ao mesmo tempo com resignação. Expressões como “quem nasce para meio quartilho nunca chega a meio alqueireâ€, ou “quem nasce para pataco nunca chega a meio tostão†foram as mais ouvidas.
O “tumba†continuou a vender lotaria enquanto as pernas lhe permitiram mover a bicicleta. O meu avô e os outros, continuaram a comprá-la, com a convicção que o cavalo que recusaram montar, não voltaria a passar à sua porta. O meu avô e os outros compradores continuaram a aceitar o seu dia a dia como obra de um destino que lhes estava reservado, e com a certeza que a única taluda que tinham garantida era a que lhes saÃa das suas mãos calejadas. Ao fim e ao cabo tão “tumbas†quanto o vendedor de ilusões a quem ajudavam a ir enganando a fome, na triste realidade do Cota-diano
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