Nação Valente
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outono
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« em: Agosto 22, 2020, 19:21:42 » |
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Na minha aldeia há uma igreja seiscentista, cuja ideia de a construir remonta, após uma visitação, a 1640. A sua construção, como acontecia com estes monumentos religiosos, estendeu-se no tempo. Deste modo, a sua fachada apresenta o estilo neoclássico e os seus altares de talha dourada incluem-se no barroco. Por ela passaram séculos e muitas gerações. Depois da queda da monarquia, o seu padre, abandonou a terra, na própria noite de 5 de Outubro, e ficou sem pároco residente. Se bem me lembro, desde a infância, constatei que a igreja não era muito frequentada. Quando havia cerimónias religiosas, apenas algumas senhoras das classes mais abastadas, a frequentavam. Penso que o catolicismo não tinha ali a mesma expressão que no Norte do país, talvez por ter sido ocupado muito mais tempo por muçulmanos.
Mas, feito este introito, não é isso que quero abordar. Hoje quero falar não da igreja, mas das “capelas”de Baco, essas sim muito bem frequentadas. Refiro-me aos locais onde na “missa” todos os fiéis tinham acesso ao vinho, e não apenas o senhor padre, como na igreja paroquial. Pelas minhas contas, nos anos cinquenta, havia seis dessas capelas, onde os habitantes adultos masculinos se juntavam, predominantemente ao domingo, para conviverem, e prestarem culto a Baco. Enquanto criança não entrava nesses “cultos” , mas estive algumas vezes presente, para ouvir os relatos de futebol, dado que era o local onde havia rádio.
Está bem presente na minha memória, a peregrinação de três apóstolos, que faziam o roteiro das capelas. Adriano, o meu avô, Baltazar, seu companheiro do berço à tumba, e António Santos, sapateiro, ex-prisioneiro da primeira Grande Guerra, com oficina e loja na paragem das camionetas. Começavam pela mais recente, de um familiar meu, onde emborcavam uns copos de tinto, sentados à volta de uma mesa. Era o se baptismo como fiéis desta adoração. A seguir levantavam-se para continuar, mas havia sempre um retardatário o que levava um outro que gostava de palavras caras como dizer “ergue-te”. O quê? respondia o outro. Quero dizer: levanta-te enquanto podes, replicava o primeiro A próxima paragem era na "capela" do senhor António Sebastião, onde marchava mais uma rodada, em honra do deus do vinho. Mais um passo em frente, na aprendizagem dos dogmas. Honrar Baco e seguir as suas leis. Beber, beber, beber, para que o vinho não azede. Além disso ajuda a dar de comer a um milhão de portugueses. Em frente, o senhor João Madeira, já os esperava com os copos cheios. Bebiam e pediam mais. Estavam a preparar-se para a aceitação, com Baco como padrinho. Aí eram membros de pleno direito Levantem-se e andem, se conseguirem disse um dos "peregrinos" ainda temos um longo caminho. E tinham. A seguir era sempre a subir. E as pernas, de tanta subida já não ajudavam. Na “capela” do tio Serafim, meio-irmão do meu avô, com tradição familiar naquele ritual, faziam a próxima paragem. Confessavam a sua dedicação a Baco.Conta-se que o seu pai, nos seus últimos dias, se alimentava de vinho, que chupava por uma palhinha. Reconfortados ganhavam coragem para chegar até ao próximo destino: a "capela" do Alberto ou Amândio, depois do primeiro ter ido para Angola. O último percurso, mais curto, levava-os até ao senhor Jacinto, onde comungavam com e acabavam a peregrinação.
Chegara a altura de regressar a casa leves e libertos dos “pecados da semana” mas com o corpo carregado de “penitências”. Quem o fazia com facilidade era o senhor António do Santos, cuja casa geminava com a última capela. O senhor Baltazar, tinha um percurso um pouco mais longo, mas era sempre a descer e todos os bacos ajudavam. Já Adriano, o meu avô, fazia o trajecto mais difícil. Tinha de subir a estrada nacional até á sua casa que ficava no arrabalde. Às vezes fazia da valeta cama. E lá iamos, eu e a minha avó, rebocá-lo até casa. Sim porque a peregrinação, não era tarefa fácil. Mas nunca desistiam. No domingo seguinte, voltariam a fazer a mesma peregrinação, num ciclo de eterno retorno.
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