Maria Gabriela de Sá
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« em: Janeiro 18, 2021, 18:26:08 » |
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Se eu andasse na escola primária e a professora me pedisse para fazer uma redacção sobre a amizade e a sensibilidade, talvez não soubesse bem o que dizer. Diria, contudo, alguma coisa: ser amigo de alguém é ser ombro, mão, pé e o coração com que se sente a alegria, o prazer e também a dor. Enfim, a amizade é sinónimo de empatia, quando pequenos gestos nos fazem transbordar a alma e nos deixam no rosto um sorriso, que não é outra coisa senão carinho.
Hoje, para dizer alguma coisa sobre o tema, não preciso de ir por aÃ, pela teoria. Socorro-me de exemplos práticos e de situações empÃricas, mais capazes de falarem de si com toda a eloquência.
No dia 6 de Janeiro, comecei mal o ano ao partir o ecrã do televisor do meu quarto. O aparelho ficou, definitivamente, sem conserto, aqui em Portugal onde, como em muitos outros paÃses, as poucas coisas que se vão consertando são os carros, as motos, as casas e pouco mais, se excluirmos as cabeças partidas e outros membros do corpo, quebrados, empenados ou doentes simplesmente.
Depois, para continuar a usufruir dos meus hábitos de ver televisão até à hora em que o galo canta e as galinhas se levantam, lá tive de ir comprar outro aparelho e desfazer-me do aleijado e inútil televisor. Mas isto não interessa para nada aqui. O que eu queria falar era do senhor Valério e da Lenhina, um casal de ucranianos que, desde que vim lás das bandas de Aveiro de armas e bagagens e me instalei aqui para os lados de Ermesinde, se tornaram nos meus vizinhos, ao pé da porta e à mão. Quando cheguei, ele que, lá na Ucrânia, perto de Kiev, era engenheiro de máquinas, pintou-me a casa da cor que eu quis e muita gente não gosta mas eu é que mando, reparou quase tudo que estava estragado e era passÃvel de arranjo ou melhoria.
Depois, à medida que o tempo foi passando, o senhor Valério e a Leninha, ele a viver em Portugal fará neste 2021 vinte anos e ela um pouco menos, tornaram-se nos anjos-da-guarda desta minha terráquea dimensão. Anjos-da-guarda de carne e osso, que passam, aqui em Portugal, pelos confrangimentos próprios da sua condição de emigrantes (juro que não sei se é com “e†ou com “iâ€. Nunca o saberei e já não me vale a pena tentar fixar), e pelas necessidades comuns a toda a gente, entre as quais, comer. A Lenhina também faz o favor de me arranjar as unhas a desoras, quando vem cansada de trabalhar, agora que ela e o marido, o senhor Valério, se tornaram meus amigos.
Assim, no Natal, dei-lhes um bacalhau que, mais do que tudo, pretendia simbolizar a minha gratidão por tantos gestos para comigo quando pequenos desaires domésticos me acontecem e eu, como se ele fosse um bombeiro em serviço permanente, me socorro imediatamente do senhor Valério para repor a ordem na casa.
A seguir veio ele, gentilmente, com um chocolate ucraniano (que ainda não provei, dado que o meu aparelho digestivo tem andado assim um bocado esquisito quanto a certas espécies de comida) e uns tantos livros em português, que as pessoas deixaram para trás quando mudaram de habitação. Diz-me que, no prédio, sou a única pessoa inteligente que se interessa por livros…
(Às vezes acho graça ao seu português falado de dezoito anos em Portugal. Quando alguma coisa se estraga e ele conserta, em vez de me dizer “experimente†diz, “proveâ€. E eu esboço um sorriso. Afinal, toda a gente diz que a LÃngua Portuguesa não é nada fácil. As excepções à regra são tantas que podem confundir. E agora, pelo confinamento do inÃcio deste ano, percebo porquê. As prerrogativas são igualmente imensas e anda para aà toda a gente a passear-se, de máscara ou sem ela, com cães, sozinhas ou assim, assim).
Os meus amigos ainda hoje se espantam um pouco por não arranjarmos nada. Diziam que as mãos de fada e de duende ainda abundam na Ucrânia, e que um televisor sem cara poderá muito bem ser submetido a uma operação plástica que lhe devolva a ele o rosto e a nós o prazer de ver o Ricardo Araújo Pereira a catar as pérolas polÃticas desta campanha, entre outras coisas.
E foi assim que o meu mais recente aleijado caseiro ficou com o destino traçado de viajar até à pátria de ambos.
Quando ele, de máscara, entrou no hall para o levar, trazia nas mãos uma caixinha: -São rebuçados – disse entretanto. Dizem que se deve ter sempre uma tacinha com rebuçados para darmos às crianças e aos amigos quando nos visitam. E então eu senti um toque no coração que me levou a querer escrever sobre rebuçados.
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