Nação Valente
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outono
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« em: Maio 25, 2024, 19:12:56 » |
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VI - A guerra é a guerra Após a conversa com Damião percebi que Rosalinda era vítima de violência marital, como desconfiava. A maior parte das vítimas por razões diversas, acomodam-se à situação. No íntimo senti vontade de desancar aquele gigante com cheiro a docas, mas mantive-me, aparentemente, sereno. - Senhor Damião, se bem conheço a Rosalinda digo-lhe que é uma mulher séria e respeitadora, e não a pode tratar como um objeto. Se a mantiver prisioneira, vou ter que intervir. O estivador saiu a resmungar. Respirei fundo. Olhei para Judite que esperava pela refeição de pelo eriçado. Deixei-me invadir por uma angústia inexplicável. Não a sentia há mais de quarenta anos, quando cumpria serviço militar obrigatório na Guiné portuguesa. - Judite, estamos metidos numa alhada. Um caso de charadas, o estranho caso de um marido desaparecido, e o caso do “estripador” para baralhar. Nem no tempo do serviço ativo na PJ estive numa situação parecida. Como vamos sair disto? Não sei. Estou convencido que sairemos, como saí de situações bem complicadas na guerra colonial. Embarquei para a Guiné, em comissão de serviço em 1969, como furriel miliciano, numa Companhia de Caçadores. Desembarquei em Bissau e a primeira sensação que tive ao pisar o cais foi de claustrofobia. O calor húmido roubava-me o ar que precisava para respirar. A mim e a todos os “bravos”, que durante cerca de seis meses tinham sido mentalizados para defender a pátria dos malvados “turras”, ao serviço do comunismo. A pátria tem que se defender, está acima de tudo, até da própria vida. Assim o exigia a nossa história gloriosa. Quem não o fizesse não a merecia. - Sobrevivi ao clima e à guerra, Judite. Um dia atrás de outro dia. Uma hora atrás de outra hora. A morte dormia à nossa cabeceira. Depois de desembarcar em Bissau, viajamos numa lancha com destino a Lime, no interior. Quando subíamos um rio chamado Gaba, pude ver a vida que me esperava durante dois anos, se os cumprisse. Ao passarmos por sítios onde a mata era tão densa que parecia engolir o rio, armas vomitavam fogo para o arvoredo para prevenir eventuais ataques do inimigo. Aquela melodia dantesca não tinha nenhuma comparação com o ruído suave das “guitarras” que aprendemos a tocar na instrução. Depressa percebi que a verdadeira formação ainda nem começara. Do local do desembarque deslocámo-nos a pé até ao aquartelamento. Foi a amostra do que ia ser o nosso dia-a-dia, ou noite a noite. Estava quase a escurecer. Num espaço curto vi o que era uma picada, e senti na pele a quentura da água de um campo alagado que nos cobriu até á cintura. O ambiente tornou-se mais irrespirável. Por fim, avistámos uns barracões degradados. Pareceu-me que ia para um hotel de cinco estrelas, tal era o cansaço provocado por aquela viagem. Só queria um lugar para descansar um esqueleto desanimado. Consegues imaginar Judite? Nem tu, nem quem nunca lá esteve. Para mais és gata. Que sabes de guerras de humanos? As guerras da tua espécie não passam de escaramuças. Não fabricas instrumentos para matar e matar mais, sempre mais. Essa é uma característica dos humanos chamados racionais. Vou dar-te a tua refeição. Quem sabe da brutalidade da guerra sem a ter vivido, por mais realistas que sejam as imagens que a imitam? Guerras, guerras, armas, armas, isso não me diz respeito. Estou á espera que me dês a comida, que é o que me preocupa. Depois de um prato de frango para gato, e da barriguinha cheia, estou feliz. Enquanto esperava a chamada de uma outra gata que se apresentava como a “Gata dos Telhados,” procurei libertar-me do que se estava a tornar uma obsessão: as fotos tiradas pela Rosalinda, e as enviadas pela misteriosa cliente. Eram muito idênticas. Mostravam as mesmas cenas. O percurso da cliente do marido desaparecido. O enquadramento marcava as diferenças. A conclusão estava ao alcance de qualquer investigador principiante. Rosalinda fora seguida e fotografada. O caçador também estava a ser caçado, como me aconteceu no batismo do cenário de guerra Um metralhar repentino interrompeu-me o sono pesado de um dia de canseiras. O aquartelamento onde tinha chegado há cerca de uma semana, estava a ser atacado pelo inimigo. Mesmo atacado, Judite. Não era uma luta de gatos, com as unhas de fora. Numa operação surpresa, feita na passagem de testemunho entre a Companhia que acabara a comissão e a que a ia render, os atacantes conseguiram ultrapassar a rede de arame farpado e entrar no quartel. Saí da caserna e aproximei-me do soldado que com uma metralhadora procurava parar o ataque. Quando cheguei ao local, esse militar foi atingido e morto. Tomei o seu lugar e comecei a disparar em direção aos invasores. Foi o meu batismo de fogo. Para o companheiro abatido, era a sua última noite na guerra, antes de regresso. Este acontecimento é um pesadelo recorrente, uma angústia que me continua a apertar o peito. Respirei fundo. Não se pode mudar o passado. Não consegui salvar um companheiro de combate, mas podia e devia salvar a Rosalinda. Liguei para sua casa. - Ouça Rosalinda, o seu marido veio visitar-me para dizer que não voltava para este serviço. Percebi que decidiu contra a sua vontade. Diga como posso ajudá-la. - Obrigado detetive. Estou numa situação de cativeiro. O Damião proibiu-me sair de casa. Tenho aguentado muito vexame, em silêncio, mas estou a atingir o limite. Não sei o que fazer. - Para já não faça nada. Vou arranjar maneira de a tirar daí. Não vejo outra solução. Com a ajuda de um companheiro especialista em abrir fechaduras, tirámos Rosalinda de casa, aproveitando uma saída de Damião. Trouxe-a para o meu apartamento. Por uma questão de segurança consegui que me facilitassem um contacto rápido com a esquadra mais próxima. Preparei uma refeição rápida, tirada do carnet dos meus dotes culinários. Comida preparada e mesa posta, presenteei uma Rosalinda, em choque, com umas ervilhas com ovos, acompanhadas com um vinho tinto sem coloração, uma especialidade originária do Alentejo. - Rosalinda, não precisa de me dizer que passou um mau bocado. Agora não é hora de pensar nisso. Beba deste néctar dos deuses e relaxe, que bem precisa. Depois voltamos a falar. Este resgate correu bem e fez-me renascer uns anos. Parece que voltei ao tempo da guerra com as devidas diferenças. - Obrigado detetive. Admiro a sua coragem e congratulo-me por ter entrado na minha vida, como um anjo salvador. - A coragem, a coragem. Todos somos corajosos ou medrosos ao mesmo tempo, depende das circunstâncias. Olhe, na guerra, temos de ser corajosos para sobreviver. Mas o medo está sempre presente. Numa das primeiras missões em que participei na Guiné, ainda “periquito” como chamavam aos novatos, o alferes que estava no comando, mandou parar a viatura e chamou um soldado chamado Casado, especialista no levantamento de minas e disse “nesta zona costuma haver minas anticarro. Vamos pela margem da picada para verificar”. Tu Correia vem também”. O alferes Matos ia na frente seguido do Casado e eu seguia na terceira posição. Um estrondo enorme. Uma nuvem de poeira. Um silêncio ensurdecedor. Pisaram duas minas antipessoais muito próximas. O soldado Casado perdeu uma perna, e gritava desesperado “já não vou casar”, o alferes Matos foi cortado ao meio e teve morte imediata. Dois jovens com uma vida para viver. Apanhei com uns estilhaços numa perna, e fui enviado para o hospital de Bissau. Não costumo falar da guerra, é um assunto que quero esquecer, mas não consigo. A pressão do combate agarra-se-nos à pele como uma lapa. Ainda tenho pesadelos. Geralmente desabafo com, a Judite. Hoje é consigo.
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