íntimo

[Mel de Carvalho]

não sei se se morre de véspera
ou as palavras adormecem esguias
inquietas
devassas
nos ombros da madrugada, meu amor
e, mudas, ai permanecem para além do romper da aurora,
do já ser dia…

não sei sequer
se são procedências
se são lágrimas doces as dores que não se choram
mudas
e s’entranham cravos acesos na traqueia, na laringe,
no dorso
no pescoço
e matam ...tábua rasa

dispo-me agora do fato de noite
do brilho cru dos lençóis vivos em que jazi envolta
(à)vida
entrego o corpo ao mundo maleável da água nua
oiço-lhe os sons mais finos, mais ínfimos
numa ousadia de recato
num metabolismo simbiótico
numa entrega perfeita

escorre-se
diáfana
rouca
p’las minhas ancas, seios e coxas,
intímos instantes em que se encontram com correntes d'afago
electrizadas

seduzida à lírica da água
viajo, viajo para além de mim,
oiço Chopin
e os pássaros frenéticos lá fora
trovadores
em espera

respiro os poros lavados
as nervuras
os tecidos
tacteio o genésico, elevo-me para além do interdito...

o cheiro dos pastos, meu amigo
                            [troveja; é basta a ventania …]
envolto no algodão dos campos
e dos corpos

sou
somos

agora
regatos verdes despenhadeiros  urgentes...

ingiro uma simples torrada, um café bem forte
e parto.

sou de novo estrada
caminho onde divagas no âmago de um écran mesclado
nas cores ainda por inventar.

fulge o verbo
confundes o tempo em beberagens salgadas de azeviche e zimbro
num corpo feito de barro... andorinha-rosa!

[Goreti Dias]

Uma lírica da água muito sensual, mas desprendida. Corpo de barro...