Fecha-se uma janela e abre-se outra. Não há maneira de se conseguir sair disto. A corrente de ar não pára, não abranda e não deixa ninguém dormir. É o que dá ter janelas que não fecham. O cómodo é quadrado com duas janelas em cada uma das quatro paredes. Ao centro está um colchão de casal sobre o soalho, onde um homem dorme, em tronco nu, coberto apenas por um lençol. Ao longo de uma das paredes do cómodo mesmo por baixo das duas janelas dessa mesma parede, há um rasgo rectilÃneo e rectangular por onde descem lânguidamente umas escadas. Entre as duas janelas da parede oposta há uma escada agarrada à parede, dessas de aço iguais à s dos bombeiros mas sem qualquer extensão, que desemboca num alçapão quadrado no tecto, de espaço suficiente para que uma pessoa se possa por aà esgueirar se desejar aceder a voos mais altos, capricho que não deve ser razão principal do residente deste espaço para ir ao piso superior, já que habita o último e trigésimo-quarto andar deste prédio nesta ultra-moderna cidade e neste ultra-próspero bairro. Não, a única razão deste residente para subir à s suas águas-furtadas é, de vez em quando, poder sentir a vertigem. Sentir que tem o poder de se lançar no abismo da cidade e, ao mesmo tempo, no abismo da morte. Sentir-lhe a imensa atracção e, simultâneamente, poder dizer-lhe que não e cuspir-lhe na cara. Sentir que não sendo dono da vida é, pelo menos naquele instante, senhor da morte, ilusões e desventuras de um homem, que se há-de fazer. Não as tem quando recebe a sua actual namorada, rapariga loira, bonita, baixinha mas sensual e senhora de um lindo sorriso, cuja grande ambição é ser uma grande actriz de cinema e teatro. Trepou à s águas-furtadas com a sua namorada a primeira vez quando ela perdeu o que chamou a grande chance da sua vida: um ensaio para um anúncio de refrigerantes na TV, desses em que todos sorriem de imensa felicidade, especialmente as mulheres (porque é que elas têm de sorrir sempre mais do que eles? alguma razão para as mulheres dos reclames terem de ser sempre mais felizes do que os homens?). No dia seguinte conseguiu um emprego a distribuir sanduÃches na cidade mas pouco lhe durou a tristeza já que uma das sanduÃches foi parar à s mãos de um encenador que lhe prometeu um papel de cinco minutos numa peça de teatro de um grupo amador. Amador ou não, ela nem queria saber, o certo é que ficou super-feliz. O namorado foi vê-la, claro, na cara o semblante de um marido babado. Treparam pela segunda e última vez à s águas-furtadas nessa noite. O mundo estava aos seus pés e ali mesmo fizeram amor uma e outra vez, aliando a vertigem da altura à s vertigens do desejo, da luxúria e da liberdade, no seio de um clima tépido pouco usual mesmo para um daqueles dias de fim de Verão, com as estrelas e a lua como únicas testemunhas passivas daquele belo momento. No dia seguinte as discussões apareceram, bem como as novas desilusões e as novas ilusões e, pelo menos para eles que acreditam nisto, pode dizer-se que o destino os separou. Nisto pensa ele agora no seu cómodo quadrado e nem sabe porquê.
Gonçalo Coelho
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