Pedro Ventura
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« em: Agosto 11, 2008, 17:18:51 » |
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Nem todos fruÃam do privilégio de ter um panorama daqueles. Daquele sétimo andar envidraçado contemplava-se grande parte da cidade, a melhor parte dela. Lá em baixo o Tejo, que se derramava entre as duas margens, era um espelho silente carimbado com o reflexo da lua, alva como uma pérola. Os barcos, pendulares, daquela eminência e distância lembravam frágeis cascas de nozes a boiarem à mercê da corrente. " Sim, tem-se uma privilegiada vista daqui ", pensava João, quase colado à parede de vidro que permitia todo aquele deslumbre. Cogitava, enquanto bebia whisky em tÃmidos sorvos e fumava. O fumo do cigarro elevava-se rente ao vidro paulatinamente, até desaparecer. Subitamente, soa a campainha, que parecia ecoar pelo amplo compartimento. João volta-se na direcção do som repentino e olha em todo o seu redor, de olhar ausente. A ampla sala, quase sem luz, tornava-se um pouco sinistra. Os móveis feitos por medida, adornados com molduras de fotografias que o faziam recordar que já fora feliz, as paredes indumentadas de quadros disputados em hasta pública, o soalho de madeira envernizado, o televisor 70X70, a solidão, o desconforto interior. Dirige-se à porta, pousa o copo na mesinha junto ao sofá de pele negra, ao lado do charuto, força um meio sorriso, abre. - Porquê tanta urgência, João? Não são horas de andar a fazer visitas... Ias-me acordando os miúdos... Espero que tenhas um bom motivo para me teres feito levantar da cama quase à s duas da manhã. - profere-lhe Daniel, o seu melhor amigo, quase de um só fôlego. Trazia mesmo ar de quem tinha sido arrancado à cama. Olhos túmidos, cabelo desalinhado. - Antes de mais, entra! Não vais ficar aà especado à porta. Ainda acordas a vizinhança. - retorque-lhe João. Daniel entra e ambos encaminham-se para os dois confortáveis cadeirões junto à vitrina que dava para o exterior. João agarra o copo que tinha ficado para trás, mas não de todo esquecido. Sentam-se. Daniel recusara a bebida oferecida, como se fosse pecado beber à quela hora, na companhia de um amigo. Por sua vez, João enche o resto do seu copo. Pensava ele que lhe iria soltar as palavras já escolhidas, engasgadas e aprisionadas à muito, com maior fluidez. - Então explica lá o motivo de tanta pressa João... Se o que tens para dizer hoje não poderia ter ficado para amanhã, aqui estou eu, todo ouvido. – diz Daniel, impaciente. - Já agora, porque é que estás quase à s escuras?! - A luz da cidade e da lua é-me suficiente... - Que poético que ele está a estas horas da noite. – graceja Daniel. – Desembucha lá homem! João dá um trago, acende outro cigarro e prossegue. - Já reparaste que está lua cheia? Nestas noites eu e a Sandra procurávamos sempre uma boa esplanada junto à praia para jantar... Não sei como hei-de começar Daniel... Tomei uma decisão muito importante... Aquele que o estimava, aguardava expectante o decorrer do discurso. - Sabes, - João titubeava - o meu divórcio e toda aquela azáfama por causa do puto e tantas outras razões... A minha vida transformou-se num verdadeiro caos e eu já decidi. Vou-me embora Daniel. Estou resoluto, vou-me mesmo embora e deixar tudo... - Então porquê João?.. Que tolices são essas agora?! As coisas lá na empresa nunca te correram tão bem, mormente com esta tua última e condigna promoção. Estás numa imparável ascensão homem! Qualquer dia estás no topo junto dos dinossauros, na mesa grande. O nosso mercado está com o vento a favor e expande-se como no tempo dos descobrimentos, os clientes cada vez são mais... Eu sei que passaste por um mau bocado mas já lá vai algum tempo... Pensei que já fossem águas passadas. Já não movem moinhos essas águas... - Ãguas passadas mas não esquecidas. Ãgua passadas, que pelo contrário, movem moinhos na minha cabeça... O que julgas não é o que sinto cá dentro. - interrompe João, que ouvia o discurso do seu amigo. Olhava-o com uma cara manifestamente desgostosa, amargurada. – Talvez fosse o meu esmero no trabalho um dos principais culpados pela minha situação... Só agora é sei o valor que a famÃlia tem, mas agora é tarde de mais. - Qual quê! De facto não compreendo as mulheres. Gostam das mordomias que um homem lhes proporciona, mas depois queixam-se da ausência, que trabalhamos demais, etc... Gostava de saber do que é que a Sandra se queixava. Não lhe faltava nada... - Não partilhavas estas quatro paredes para saberes... Mal vi o miúdo a crescer... – João olha para a moldura que estava por ali perto. A sua fotografia com o seu rebento ao colo e ao seu lado a mulher que já não lhe pertencia. - É verdade, sabes quem é que perguntou por ti hoje? Aquela loiraça que costuma ir lá à s reuniões da mesa grande... Grande pedaço de mulher aquela. E eu já reparei que ela a ti dá-te bola. Eu não a deixava escapar. Ao mÃnimo sinal que me desse, nem pensava duas vezes... - Daniel, não é nada disso que estás para aà a falar, não me devo estar a fazer entender, eu vou deixar tudo percebes?... Não é só a empresa, é tudo. Mesmo tudo, e para sempre... Vou deixar esta vida... - sentia-se alguma disfonia, talvez por causa do álcool. - Essa é para rir ou chorar?! Vais deixar esta vida?! Que outra tu poderás ter?! És bom naquilo que fazes, não te vejo a trabalhar noutro ramo qualquer... Passaste por tanto naquela empresa, nunca foste negligente, sempre foste brioso no trabalho... Empenho e dedicação, lembras-te? Dizias-me isso e eu seguia-te como exemplo. Se não fosses tu a dar-me uma achega... Devo-te isso. É verdade, não te esqueças que amanhã é o teu aniversário, aliás, parabéns! – Daniel efusivamente. – Já passa da meia noite. Dá cá um abraço. Abraçam-se amistosamente. Daniel fica virado para a mesinha, continua: - Aquele charuto não foi o que te trouxe de Cuba? - Sim, foi. - Amanhã vamos fazer um festão lá na empresa, não é todos os dias que se fazem quarenta anos... - Não me estás a perceber Daniel... - João quebra-lhe o discurso, tenta ficar com a palavra, mas, visto a tentativa sair gorada bebe com maior sofreguidão, os sorvos perderam toda a sua timidez. - Estou a perceber e bem, estou a perceber que tu és um grandessÃssimo maluco, fazes-me saltar da cama a esta hora da noite para me dizeres esses disparates. Se o pessoal te ouvisse a dizer essas tolices, rir-se-iam na tua cara... - Daniel levanta-se e dirige-se para a porta. - Até amanhã João. Amanhã é outro dia de trabalho e de aniversário. Não te vão faltar mimos lá na empresa... Talvez a loiraça amanhã apareça por lá... - Daniel!!.. - João chama o amigo que se tornara vulto, mas a porta já se tinha interposto entre eles, anulando o chamamento, quase rogo. João erige-se e entrega-se à posição inicial. Acende, não um novo cigarro, mas sim um charuto guardado à muito para um ocasião especial, quiçá fatÃdica. Enche o copo de novamente e fuma. Fuma muito e satura o ar. O Tejo lá em baixo continuava no seu curso normal, corria no seu vagar. A lua continuava reflectida nas águas, e o seu reflexo, balanceava imperceptivelmente com as ondas. A noite, e o silêncio que a acompanha. João dá um derradeiro gole, abre uma gaveta que se encontrava à distância de um braço e tira a arma de fogo já carregada. Goza de mais alguns minutos de silêncio e reflexão antes de consumar o acto. Um último suspiro. O silêncio da noite é rompido pelo estrondo, pelo instante de coragem. A vizinhança acaba por acordar em alvoroço. No dia seguinte, Daniel iria sentir o peso do remorso por não ter dado a devida atenção ao seu amigo e por ter confundido e baralhado todas as suas palavras. Por não ter descortinado nas entrelinhas um pedido de socorro. As cores alegres de festa mutar-se-iam no luto da perda, e no cinzeiro, a ponta do charuto que Daniel iria reconhecer.
2002
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