marcopintoc
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« em: Agosto 23, 2008, 00:33:43 » |
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Primeiro tremeu, depois veio um frio incontrolável. A sensação de ser observada. Era como se, de repente, a fechadura fosse apenas a frágil barreira que impedia a entidade de entrar porta dentro. Observou entre as brumas e sentiu tudo, como se um filme lento fosse projectado no medo do qual não conseguia acordar. A maçaneta, sem ruÃdo, rodou e a porta abriu-se, demasiado lentamente para ser movimento de coisa humana, a luz do corredor e a sombra que projectava para o quarto revelaram o caminhar de uma figura, escura e com contornos bestiais. Foi naquele momento que Susana acordou e procurou o homem que já não estava há muito Estava completamente gelada. Um frio de morte viera com aquele sonho estranho que já se repetira por duas ou três vezes na última semana. Tinha atirado para longe toda a roupa de cama e, embora já fosse Abril ,um frio que parecia vir das entranhas da alma tornara os pés em dois pedaços roxos de má circulação.
Virou-se para o lado e tentou voltar ao sono. Inútil. Dali a algumas voltas do ponteiro ainda não tinha prego olho. Começava a assustar-se com estes sonhos tão irrealistas e ao mesmo tempo tão próximos. Uma sensação de angústia profunda invadira-a após ter despertado. Tentou deduzir o que é que a fazia ficar assim? A lógica, aquela coisa que permite o funcionamento normal do dia-a-dia, misturava ao cansaço do trabalho a menstruação que picava os ovários como justificação para a pulsação demasiado acelerada. Porém, dentro dela brotava uma selvagem aterrorizada, prestes a arrojar-se ao chão, tapando a cabeça com as mãos trémulas. Sabia que tinha visto um demónio, não envolto em chamas mas em luz e sombras, da sua imagem apenas reconhecia um pesadelo de infância . No entanto, ela sabia que havia mal naquele vulto.
Felizmente era Sábado, não precisava de erguer o corpo completamente inundado de cansaço para a luta. Hoje não teria que suportar o lento escorrer do transito, em ponto morto, meros metros feitos em três cigarros e dois noticiários da TSF, vendo as barracas restantes do Casal Ventoso e os gigantescos “outdoors†ao longo do viaduto Duarte Pacheco assediando-a.... COMPRA...VOTA..... Bebeu, sentada à mesa da cozinha, um café bem quente e rebuscou a mala procurando o primeiro cigarro do dia. Para combater a letargia que o “Valium†trouxera à cabeça e que lhe proporcionara o precioso sono ,pesado ,doentio, hipnótico . Bebe em tragos rápidos. Levanta-se e entra na casa de banho, liga o aquecedor, e deixa cair para o chão a camisa de noite sem elegância que transformava a imagem reflectida pelo espelho num saco de batatas descalço e despenteado.
Sente o frio da borda da banheira arrepiar as nádegas nuas enquanto se senta fumando outro cigarro. Como qualquer fumador inveterado sabe quanto indispensável é elevar rapidamente o nÃvel de nicotina após uma noite de pouco ou mau sono. Lá atrás a água corre erguendo as primeiras nuvens de vapor. Levanta-se e contempla-se no espelho já meio embaciado. As ancas. Embora não sejam largas já foram demasiadamente atacadas pela celulite e sente uma profunda vergonha ao percorre-las com o olhar . As mamas - Meu Deus, que horror -exclama baixo, só para ela ouvir , os mamilos demasiado grandes e compridos para o tamanho do resto. Lembra-se de como odiava quando João Pedro, lhe chupava os mamilos olhando-a depois, bem nos olhos, com um esgar horrÃvel que ele julgava sensual e sussurrava tentando entoar uma voz grossa e quente que não tinha: - As tuas tetas são uns biberões, Filha - Odiava que lhe chamassem filha. É uma expressão que os homens usam com as putas. Furiosa com um corpo que sentia vulgar, atirou o cigarro e entrou brusca na água;parou, a mão vasculhou à procura do cordel do tampão. Um cheiro horrÃvel e aquele objecto nojento seguiram rapidamente o caminho do cigarro cano abaixo. Após os músculos se terem descontraÃdo da noite de insónia saiu lentamente da água que começava a arrefecer. Enrolou-se rápida na toalha e saiu para o quarto evitando deliberadamente que o olhar encontrasse o espelho. Sentia uma vergonha profunda por ter deixado que o corpo se denegrisse nos chás das senhoras casadas e no abandono de quem tem homem fixo. Lembrou-se de uma colega de liceu da qual não recordava o nome. O nome de qualquer forma não interessa, vira-a há alguns dias, descendo as escadas rolantes do Rossio com os olhos dos homens a cobiçaram-lhes as partes. O olhar esbugalhado e descarado de um negro ,o discreto morder de lábio de um fato de bom corte em que vinha a reparar.
Folheia as revistas que a mãe lhe trouxera. Lentamente uma minúscula boa disposição começava a atingir as nuvens do dia que se adivinhava bonito. Vestiu-se e vai à s compras. Todas as mulheres se distraem a comprar, diz o povo. No corredor iluminado do hiper os carros praticam o desvio milimétrico guiados por idiotas de olhos fixos nas prateleiras. Tampões, não se pode esquecer de comprar tampões. Um CD da Nina Simone compõe o carro e prepara um fim de tarde enroscada no sofá a ouvir aquela mulher que tem na voz todos os amores destruÃdos do mundo. Por vezes é possÃvel estar só e sentir-se feliz. Embora deteste estar sozinha. Embora o caos daqueles últimos meses à mistura com as picadas na barriga e o cansaço de uma noite mal dormida. Embora o raio daquele sonho. Embora isso tudo tinha ,já há algum tempo, a perfeita noção que embora detestasse a solidão em que habita prefere-a ao cheiro a sovaco e aos peidos do homem ao lado de quem dormia. Aquele cheiro que ele passou a emanar ao fim de alguns anos de convivência e partilha do leito comum. O dia a seguir aquele onde o amor passou a ser uma palavra de periodicidade mensal e que se fazia ,sem imaginação ,em poucos minutos sem mágica.
A noite começa a cair. Por uma vez o seu dedo não prime o botão de “Play†e o silêncio que percorre a casa desassossega-a. Os tÃmpanos correm todos os cantinhos à procura de estalido anormal, um afastar de cortinas, um passo. A televisão é convocada para abafar o receio e a monotonia. Pouco resulta. Levanta-se e dirige-se à cozinha. Pelo caminho assegura que acende todas as luzes da casa. Ninguém, Nada. Os hipnóticos estão no armário, selecciona mais um que a dose prescrita. Regressa à sala e serve-se de um generoso licor.
Desfalece na cama após um penar de pés arrastados. Cobre-se e parte. Não repara nas luzes acesas, na televisão ainda ligada, na porta que ficou por trancar, na janela da cozinha aberta. Parte para o abismo onde o sonho não consegue mergulhar. Dorme tão fundo que não escuta. A maçaneta a rodar, a silhueta que invade o quarto , passo lento e seguro , ajoelha-se e murmura : - Olá Filha
Segundo o relatório da autópsia os golpes foram superiores a meia centena. Todas feridas profundas. No entanto, o que intriga profundamente as autoridades é o facto de o sémen encontrado no decurso da autópsia emanar um estranho odor a enxofre. Observada ao microscópio esta cataplasma exibe obscenos espermatozóides de múltiplas cabeças que pugnam entre si.
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