Djabal
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« em: Å¿etembro 02, 2008, 19:54:12 » |
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São Paulo, região do ABC. Um restaurante que serve toneladas de polenta e frango frito divididos em porções gigantescas para famÃlias que disputam mesas como as poucas cadeiras da rodoviária. Em plena hora de serviço, tomava minhas cervejas com um amigo.
Alemão Ele saÃa da fábrica aqui ao lado e me ajudava no caixa, assim do nada, em troca de um papo, uma cerveja. Contava suas histórias sem eu pedir. Descrevia situações, confessava coisas, mas ao que parece, temia o discurso direto, rude. Preferia insinuar. Hoje, um dia frio, invernal, hoje eu me lembrei de uma daquelas histórias.
Ruud (esse era o seu nome) trabalhou muitos anos numa montadora. Lá pôde desenvolver sua habilidade predileta; chegava cedo e saÃa tarde. Encontrou uma vaga no departamento de vendas. Fez o possÃvel para arrumar uma função que lhe desse a possibilidade de viajar. Adorava velocidade: dentre as suas façanhas, capotou um caminhão.
Esse departamento também fazia análise do mercado para decidir se as pessoas interessadas em vender automóveis de uma cidade teriam espaço para isso. Um funcionário com autoridade para dizer o “sim†ou o “não†para o comércio local. Não é desnecessário dizer que os pedidos de representação eram recusados na sua maioria.
As viagens eram para cidades pequenas, de acesso difÃcil e poucos habitantes. Pegava o carro e se despachava para o interior do Estado, ou para o litoral longÃnquo, para barrancas dos rios, beira de matas.
Uma dessas viagens coincidiu com o perÃodo de férias escolares. Perguntou ao filho se ele queria dar um passeio. Para Paulo de Faria, divisa de São Paulo com Minas. O convite foi aceito imediatamente. O pai determinou que o filho Hans – chamado carinhosamente como Hansi - estivesse pronto à s seis horas da manhã do dia seguinte.
Quinhentos quilômetros pela frente. Subiu o filho no carro. Dez anos, gordinho, corado. A pólio engolira a musculatura das suas pernas. A solução, colocar uma órtese que lhe desse alguma firmeza no plano, coibindo os degraus.
SaÃram contornando o trânsito e a cidade até atingir a estrada. Nela, ambos se divertiam ultrapassando os demais, fazendo troca de marchas no câmbio sem pisar em pedal, apenas ouvindo o ronco do motor. Ensinou o tempo para a troca das marchas. Venceram todos os obstáculos do caminho. Um deles ficou gravado na memória.
Um regato. Raso. Estreito e fácil de transpor. Hansi pediu que passassem bem rápido. Duas cortinas d’água, uma de cada lado do veÃculo, uma beleza. No leito havia um buraco. Um tranco incrÃvel fez com que o menino batesse a cabeça no teto. Susto para ambos, um galo na cabeça e quase um atolamento. Mas nada demais. É bom pra aprender, disse Alemão.
Chegaram à cidade, pequena e hospitaleira, dominada pelo Rio Grande. Logo encontraram uma pousada. Na primeira manhã, ao levantar, descobriu que o filho não sabia se trocar. Viu-o sentado na cama, esperando. Falou de pronto, respondendo ao pedido implÃcito: Vamos lá, filho, se vira. E foi cortar a barba, deixando Hansi, por sua própria conta. Ambos terminaram juntos de se trocar. Enfrentaram com vigor o café da manhã.
Durante esse perÃodo o pai se mostrava contrariado, preocupado. O fato de ser sido o primeiro filho, o primeiro neto, tudo isso pesou. Recordou o tempo do nascimento. Uma verdadeira batalha a escolha do nome. Sem consenso. Cada um dos familiares próximos escolheu o seu nome de preferência e colocou no chapéu do avô. Lambuzaram o dedo do bebê com mel para que ele mesmo escolhesse o nome próprio. SaÃram o mesmo nome do avô, o mesmo apelido e o mesmo temperamento alegre do avô.
Foram convidados para a festa de São Pedro, na Cachoeira da Fumaça, logo mais à noitinha. Encontraram o arraial. Um amplo tabuleiro de terra batida, enfeitada com bandeirolas de várias cores. E todos os apetrechos: pau-de-sebo, cadeia, igreja, venda de prendas, comes e bebes. Hansi procurou seu lugar para sentar, enquanto o pai tomava o seu primeiro quentão. Observava o andar do filho, cambaio, inseguro, instável, pesado e mecânico. Movimentava os músculos do tronco para caminhar. Chamava a atenção.
E ao contar a história, nesse momento o seu rosto ficou tenso, a expressão séria, muito mais séria do que o habitual. Como se sofresse de algum mal fÃsico.
Percebeu enquanto contava que Hansi flutuava e andava normalmente, sem necessidade de ajuda, leve, solto. Foi presa de alguma alucinação? Não. Estava seguro disso. O rosto do filho exibia um sorriso rasgado e prendia a atenção dele e de todos. Eles se aproximavam para conversar, animados com a presença da dupla. Satisfeitos e Ãntegros. O seu rosto se desanuviou.
Voltou à história.
Foi até onde estava o menino e sentou-se ao seu lado. Participou das conversas. Falaram de tudo, de todos. Serviram-lhes pamonhas, doces e salgadas, pés de moleque, pipoca. Uma rajada de fogos iluminou o céu, um jardim de estrelas.
Ouviram um sanfoneiro tocar uma melodia pobre e repetida, mas contagiante. Ruud fora campeão de danças, fazia par com a irmã. Esquentado e incentivado pelos diversos pares, encontrou o seu e lá se foi. Dançou. Volta e meia, sentava-se para saber se tudo estava bem. Até que o filho pediu para ir deitar.
Indicou-lhe uma pequena casa de taipa ali ao lado. Recusou, o olhar pedindo ajuda. E saiu.
O pai dançou até a madrugada. O sereno frio da noite o lembrou de dormir. Voltou para o quarto e encontrou um vulto sentado na cama, com um olhar brilhante e aterrorizado, fitando um vão da parede, arregalado. Viu o buraco se mexendo. Havia uma espécie de tomada viva, rósea, manchada em tons escuros, coinchante. Num instante, percebeu o que acontecia.
Disse ao menino: Hansi, tenha dó! É só um porco! Não tem nada demais! Vira pro lado e dorme!
Tirou a roupa, deitou, dormiu. Ressonou pesadamente.
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