josé antonio
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escrever é um acto de partilha
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« em: Setembro 20, 2008, 14:35:15 » |
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Era tradição, regra e dever os pequenitos ainda com idade capaz de passarem por anjos, comporem as procissões atrás dos pomposos e elegantes cavalos da guarda, vestidos a rigor para o cortejo. Os guardas, esses com brilhantes capacetes encimados por uma espécie de peruca digna do Sebastião de José Carvalho e Melo ou qualquer outro fidalgo da época, conduziam-nos o melhor possÃvel, não evitando alguns e ocasionais desalinhamentos provocados pelo mau feitio do cavalo, aborrecido, penso eu, pelo facto de estar a trabalhar num domingo sem retribuição de horas ou ração extras. Naquela idade a minha personalidade e independência reduziam-se ao acenar de cabeça sem direito a palavra. Estilo peluche que só abana e não fala. Assim e por esse motivo caà dentro da procissão. Disfarçado de um anjo de que não me lembro o nome, porque se calhar não era conhecido mas apenas inventado pela minha mãe, num anjo qualquer inventado com as vestes conseguidas sem destoar dos restantes participantes. E lá fui. As mãezinhas, sim porque o arranjo das procissões era trabalho e responsabilidade exclusivas das mães, perfilaram os seus meninos-anjos, cada qual o mais bonito a seus olhos, davam os últimos retoques nas túnicas, sempre túnicas, e nos caracóis, eu usava caracóis muito mais bonitos e sofisticados que os do Marco Paulo há décadas atrás. E quando os senhores da confraria, mandados pelo pároco ordenavam o arranque da procissão, arrancávamos rua fora, por vezes tropeçando nas flores, nas que já lá estavam e nas que nos atiravam à passagem, assim tipo agradecimento de toureiro e forcado depois da corrida, à s mãos-cheias de pétalas de rosas, crisântimos, jarros, orquÃdeas, malmequeres e se calhar girasóis, generosos no volume e abundância, por todos os lados, menos por um, o chão. TÃnhamos de caminhar cadenciados com o ritmo da banda que caminhava no final da procissão, ignorando a sua desafinação nos acordes mais difÃceis e mal ensaiados. Naquela procissão, porque participei noutras, saiba-se, seguia à minha frente um outro anjo encarnando o S. Tiago que segurava na ponta duma cana um belÃssimo cacho de uvas moscatel. Creio. Ora aà começou o dilema quando fácilmente descobri que sem qualquer esforço, apenas argúcia e descaramento poderia usufruir dum óptimo entretenimento para o resto do percurso. Assim e porque já haviam batido as cinco da tarde, quando o pseudo S. Tiago com falta de forças começou a deixar tombar a cana com o cacho de uvas moscatel na minha direcção, limitei-me a iniciar o bem intencionado trabalho de aproveitar os vagos, comendo-os. Já quase a meio do cacho, o meu somÃtico, - oxalá excomungado, colega S. Tiago, desatou numa grataria que quase assustou os cavalos da guarda, os guardas e a assistência. A procissão parou. A mãe do palerma S. Tiago veio a correr limpar-lhe as lágrimas e confortá-lo com muitos beijinhos, compôs-lhe o fato e ele prosseguiu. Quanto a mim o destino previsto, fui retirado da procissão pela minha mãe e assisti inconformado ao desaparecimento do resto do cacho de uvas moscatel, tão saborosas.
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