sonhadoremfulltime
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« em: Setembro 22, 2008, 11:40:18 » |
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“Pequei novamente, padre. O senhor sabe que quando eu morrer, irei directamente para o inferno. Nem sei o que me conduz, para eu aqui vir. Julgo que sempre que regresso é para abusar da sua paciência, porque me sinto mais aliviado, é um peso que me sai dos ombros. O senhor padre sabe que não escolhi esta odiosa “profissão†de traficante, sempre pensei que foi ela que me escolheu a mim. Já lhe contei dos bandalhos que tenho mandado para o outro mundo. Ainda nem rezei todas as penitências do mês passado, mês movimentado, um polÃtico e um traficante na mesma semana. Ao menos o traficante era gente boa, ajudava a vizinhança, fazia alguma coisa pelos pobres. O senhor padre sabe que eu não escolho os meus alvos, nem faço perguntas, nem quero saber dos motivos. Neste ramo a gente tem de ter critérios e princÃpios. Mas, pequei de novo e desta vez estou deveras incomodado. Este serviço não me sai da cabeça, é que desta vez foi uma mulher, padre! Eu não gosto nem de bater em mulheres, a não ser quando pedem, quanto mais fazer um trabalho destes. Fiquei deveras incomodado quando aceitei esta encomenda por telefone, pois desta vez foi inclusive uma mulher quem me contratou. Aquela voz rouca e aveludada pediu-me para fazer uma execução e fiquei ainda mais intrigado, quando ela me confidenciou que a vÃtima era outra mulher. Mas o senhor conhece-me, não tenho o direito de escolha e gosto de fazer tudo muito bem feito. Sou um profissional. Possuo um nome no mercado. Como um profissional nestas andanças, antecipadamente dei comigo a pensar que motivo teria essa contratante misteriosa. Provavelmente, seria ciúme, disputa por algum homem, ou até por mulher, sabe-se lá. Podia ser por inveja. Talvez, motivo de herança. Ou seria por dinheiro? Algum seguro de vida milionário. Chantagem. Olhe, neste negócio, os motivos são os mais variados, acredite. Para levar a termos o trabalho, necessitava de a espiar. Foi o que fiz. A primeira coisa que me perturbou era ela morar sozinha. Depois a sua aparência, de uma beleza natural, dessa que não precisa de maquilhagem, de silhueta esguia, de uma elegância clássica. Não tinha sequer trinta anos, era muito discreta na aparência, muito reservada. Não tinha amigos, não recebia visitas nem visitava ninguém. Apesar de bonita, não tinha namorado. Não saÃa para festividades nem tão pouco a discotecas. Apenas aos sábados dava uma espécie de ronda pelas livrarias da baixa e dessa forma ia aumentando as fileiras de livros nas estantes de casa. Aos domingos à tarde por vezes deslocava-se ao Bingo, não sei se ganhava ou perdia, mas a sua vida social resumia-se a isto. Durante a semana ela saÃa cedo de casa, passava por uma pastelaria de esquina, tomava o seu café, puro, comprava uns chocolates, muitos chocolates, e seguia para a entrada do edifÃcio onde trabalhava. Não consegui descobrir exactamente o que ela fazia, parece-me que era uma importante executiva de uma multinacional ou algo assim. SaÃa ao meio-dia, sempre sozinha, almoçava nos restaurantes ali por perto. Gostava de variar. Por vezes dava uma olhada nas novidades das lojas através das vitrinas ou visitava uma ou outra livraria. Passeava pela calçada, sapatos de salto alto, bem alinhados, cores sóbrias, sempre com os cabelos presos, óculos a combinar com a forma das sobrancelhas, mala com os sapatos, enfim, formava um agregado bonito de se observar. A única coisa que não combinava era; aqueles olhos tristes, aquele semblante de quem está longe, em devaneio, como se algo lhe faltasse. No fim da tarde, ao sair do trabalho, ia consecutivamente para casa. Tomava um banho demorado e depois mergulhava nas suas leituras, até cerca da meia-noite. Assim era sua rotina, o quotidiano de uma mulher solitária e bem comportada. Concluà que a melhor forma de cumprir a minha missão, seria dentro de casa. Precisava estudar o ambiente. Utilizei uma gazua para entrar. O bom gosto na decoração, era o que sobressaÃa naquela casa. Na sala havia um conjunto de gravuras de “mandalas†e também uma série de fotos de túmulos e cruzes de cemitérios. No quarto, uns rosários e umas caixinhas de comprimidos anti depressivos. Pelas paredes, imagens de Buda e deuses egÃpcios. Permanecia ainda aquele cheiro no ar. Incenso. Muito incenso. Feito esse primeiro reconhecimento de terreno, e após cheirar todo o seu perfume, muitos perfumes, saà da casa, tomando os devidos cuidados para não deixar nenhuma marca, nenhuma impressão. Resolvi regressar no dia seguinte, queria saber mais sobre a mulher que, aparentemente, não fazia mal a ninguém. Desta vez, procurei uns álbuns de fotografias. Fotos de algumas viagens, da sua formatura, várias fotos de praças, onde ela gostava de fotografar estátuas e esculturas, com fotos de vários ângulos e da mesma escultura. Descortinei ainda um caderno com muitos manuscritos, poemas principalmente, quase sempre falando da morte, de suicÃdio. Sobre a cama encontrei apenas umas revistas de cariz erótico com fotos de homens nus e numa gaveta, uma variedade invejosa de peças de lingerie apetecÃvel, com transparências, desenhos, fendas, penugens e outros enfeites. Devia ter alguma fantasia. Digo eu… Remexendo mais um pouco, encontrei uma caixa com cartas de um ex-namorado. Optei por as colocar por ordem cronológica. As primeiras muito melosas, com declarações e muitas promessas de amor, algumas até mesmo elogiando as paisagens mais Ãntimas da destinatária. As seguintes começavam a falar de planos, tais como juntar as escovas de dentes. As seguintes realçavam um cariz mais gélido. As declarações passaram a ser reclamações, sobre brigas e as irreconciliáveis diferenças de temperamento e de objectivos. Por fim, a última missiva, falava mesmo era de despedida. Nada de relevante pude retirar das cartas que tinha lido. Tudo naquela casa era bonito, mas ao mesmo tempo, um pouco triste. Eu já conhecia sua intimidade, já estava a sentir qualquer coisa de exuberante e mÃstico com aquela mulher. Já estava era com desejo de matar aquela que me contratou, a tal da voz rouca e aveludada. O senhor sabe, padre, sou um profissional, os meus clientes em primeiro lugar, meu nome a zelar, e depois, o meu pagamento pelo serviço já estava depositado. Nas minhas perseguições, notei como os seus gestos eram delicados, era graciosa no andar, muito educada e gesticulava de maneira sempre muito suave. Escolhi então um método que não fosse muito cruel e sanguinário, como das outras vezes. Possivelmente esperar por ela dentro de casa. Um pouco de éter nas narinas e depois, bem... depois uma dose de barbitúricos, formando um cocktail fatal. Ela não merecia sofrer. Foi assim que aconteceu padre. Assim que terminei vim directo para cá. Estou a tremer deste modo e com a voz um pouco embargada, porque depois do serviço, encontrei no seu quarto um CD, com a palavra "declamações.†Coloquei o CD no aparelho e apareceu a filmagem de um evento de poesia filmado algures numa livraria da capital. Lá estava ela, de cabelos soltos, declamando poemas, com aquela voz rouca e aveludada. Se o remorso matasse... eu estaria morto, Padre.â€
Dias depois o corpo foi encontrado junto à linha férrea entre a Damaia e a Reboleira. Tinha sido atingido no crânio com um revólver Taurus, que se encontrava na sua mão.
A PolÃcia Judiciária está a investigar o caso. Apenas um facto confirmado. Conhecido por JP, de 28 anos de idade, segurança de uma discoteca, era traficante de armas e fazia alguns “favores†para uns imponentes fidalgos da corrupção e tráfico. Falta confirmar se terá sido assassÃnio ou suicÃdio.
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