[A primeira parte do texto aqui.]O prazer de não ouvir nada, absolutamente nada, nicles, niente, nem sequer aquele ruÃdo branco da estática da televisão, nem sequer aquele som de ar que se ouve nos búzios que faz lembrar o mar, nem sequer aquele barulho silencioso que existe quando mais nada se ouve, o prazer de não ouvir nada desta maneira era algo que José nunca tinha experimentado. Vinha a pensar precisamente nisto, naquela maneira de que já vimos atrás, pensar sem pensar, isto é, sem formular no pensamento a linguagem natural, pensar, portanto, em silêncio, quando se apercebe que alguém está a tentar chamá-lo. Como ele se apercebeu disso, visto que a dita pessoa estava a caminhar por trás dele, é um segredo que ficará para sempre sem se descobrir, o que é certo é que José se apercebeu do chamamento mesmo embrulhado no seu silêncio, inexplicado até agora. Voltou-se para dar de caras com um dos seus colegas de escritório, um tipo com quem nem sequer se lembrava de alguma vez ter conversado mais que o Bom-dia, como está, Bem, muito obrigado, que se dirigia com uma expressão imperativa na fronte enquanto lhe estendia uns papéis. Ele não fazia a mÃnima ideia do que o colega estava a dizer, mas assumiu que fosse relacionado com trabalho, suspeitou que fosse trabalho para fazer no fim-de-semana, teve a certeza quando viu os papéis que o tipo lhe despejou em cima com uma frase qualquer que o José foi, como já sabemos, incapaz de ouvir, mas que para conhecimento do leitor foi Toma, a porca quer que trates disto no fim-de-semana, diverte-te, ao que o José apenas respondeu com um apropriado aceno de cabeça consternado de quem tem trabalho para fazer em alturas que não quer fazer. O colega não se apercebeu do estado particular do José nem fez mais perguntas à cerca da cena que se passou no escritório, simplesmente atirou uma despedida enquanto virou costas, mal-educadamente, mas em sinal de boa sorte para o José que pôde assim evitar o primeiro de muitos problemas que a falta de audição lhe pode vir a causar.
Ao rodar a chave na porta de casa apercebeu-se pela primeira vez da estranheza da sua condição. Porque ensurdeci, pensava, porque raio é que de repente fiquei sem conseguir ouvir nada, pensava mais e com estes pensamentos entrou em casa, silenciosa, não que ele fosse capaz de perceber isso, mas era como sempre a encontrava. Vivia com a mulher, moça como ele, calada, e aquela casa era como eles, calada, perfeita para eles, que tanto gostavam do silêncio, especialmente um do outro, do silêncio que um proporcionava ao outro. Ela estava em casa, mas, como hábito naquela habitação, não se ouvia um barulho que fosse a não ser os barulhos naturais de uma casa moderna, o zumbir do frigorÃfico, o ocasional carro a passar na rua sossegada, os movimentos da pele humana na pele de um sofá, esse tipo de ruÃdos que o ouvido se habituou a desprezar, como se o ouvido tivesse vontade própria e capacidade de decisão sobre as coisas que deve ou não ouvir, porque, vai-se a ver, e afinal os ouvidos são mais do que aquilo que pensamos, de tal modo que quando José entrou em casa entrou com a sensação que não tinha ensurdecido de todo, mesmo com os pensamentos que lhe ocorreram silenciosamente enquanto rodava a chave. Aproximou-se da mulher que estava na sala, sentada no sofá, a ler, silenciosamente sem dizer uma palavra, que quem não ouve também não vê necessidade de ser ouvido, sentou-se ao lado dela e beijou-a como sempre fazia, um beijo ternurento mas rápido, como quem diz discretamente Gosto de ti e estou cansado, e era esta a mensagem que o José queria passar, esqueceu-se de acrescentar no beijo Ah, e estou surdo por completo, surdo dos ouvidos e do cérebro, mas isto são coisas que não passaram pela cabeça do pobre José que pela primeira vez na vida conseguia aproveitar o tão amado silêncio com que sempre sonhara. A mulher não estranhou, nem havia nada para estranhar no beijo do José, porque, como já vimos, ele não transmitiu mais do que o costumeiro, e ignorou-o mais uns minutos até terminar o capÃtulo, coisa que também a ele não estranhou, já estava habituado a ser ignorado pela mulher quando havia livros envolvidos, ela tinha um caso de amor muito especial com a palavra escrita e impressa. Quando terminou o tal capÃtulo, de que livro não interessa, mas aos curiosos era o Ensaio sobre a Cegueira, voltou-se para o marido e olhou-o bem dentro dos olhos como que para ter a certeza de que ele não cegara, ela que não era mulher de médico não queria ser também cega. Olhou bem nos olhos do marido, como estava a dizer, e viu pela primeira vez que algo estava fora do sÃtio, que alguma coisa de diferente tinha acontecido, como se a surdez fosse passÃvel de ser vista num olhar e perguntou-lhe, olhando-o bem fundo, Passa-se alguma coisa. Ele, que também fixou os olhos nela, retribuindo a profundidade do olhar e talvez aà dizendo aquelas coisas que não disse no beijo, percebeu os movimentos dos lábios bonitos da mulher, não se demorou neles a tentar lê-los, porque, afinal, só ensurdecera há poucos momentos, demora muito tempo a um surdo comum desenvolver tal capacidade quanto mais um que nem sequer é capaz de tagarelar em linguagem de gente consigo próprio, e no tal olhar de profundidade grande, compreendeu a preocupação da mulher e respondeu que apenas tinha recebido ordens para trabalhar em casa no fim-de-semana. Ela recostou-se um pouco mais no sofá, aliviada da falsa inquietação que tinha visto por momentos no olhar do José e continuou a ler a perturbante história do mundo de cegos. A isto chega o entendimento de um casal, que basta um olhar para se ver a verdade e umas palavras para se ouvir a mentira.
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Ainda continua...