[Parte I aqui][Parte II aqui][Parte III aqui][Parte IV aqui][Parte V aqui]A solução para a surdez deste surdo não estava no sono. Não sabe ele bem como, mas de manhã, ainda consumido pelo pânico de não conseguir escrever, mais consumido ainda pelo pânico de uma qualquer doença degenerativa o estar a atacar progressivamente, o José adormeceu, mal tinha ainda pousado a cabeça na almofada, para repousar o corpo apenas, pelo menos era com essa intenção que se deitava, acabou o cansaço por tomar conta da intenção e do pânico e o surdo adormeceu. Não sonhou com nada, foi um sono completamente vazio de sensações. Foi um sono em que acordou quando pensava ter acabado de fechar os olhos, na realidade passaram mais de cinco horas. Felizmente para o José que era fim-de-semana e não tinha faltado ao emprego. Melhor assim que não tinha de ouvir os grunhidos da porca, não que os pudesse ouvir, claro está se os grunhidos da chefe foi a primeira coisa que o surdo deixou de ouvir, mas percebe-se a intenção da minha frase.
Acordou e chamou estremunhado pela mulher, esquecendo-se de que estava surdo e que portanto não podia ouvir a resposta de Margarida. Margarida, clamava, Margarida, onde estás. Ela não respondia, não que tivesse o discernimento de se lembrar da surdez do marido, nada disso, é que simplesmente não estava em casa. Se estivesse o mais provável era gritar-lhe a plenos pulmões, O que é que queres, como se assim conseguisse magicamente devolver-lhe a audição. Casal estranho este que é tão silencioso junto mas se separado por uma parede que seja, grita como se o outro estivesse no fim do mundo. Eventualmente José repara no post-it que a mulher lhe deixou em cima da mesa de cabeceira e leu-o, Fui à s compras, volto já, lembrando-se então que ainda era capaz de ler. A esse primeiro pensamento, que lhe pareceu estranho, porque haveria ele de se lembrar que ainda era capaz de ler se isso era coisa que sempre fizera, ocorreu-lhe então que no dia anterior tinha perdido a habilidade de escrever. Correu a pegar na caneta e a rabiscar no mesmo papel que a mulher tinha escrito o recado em letra bonita como é, normalmente, a letra feminina e concluiu, à s primeiras voltas de caneta, que esta propriedade, ou falta dela, se mantinha. Só então lhe surgiu o inÃcio de tudo, a perda súbita da audição. Pensou, mais uma vez repito, naquela maneira peculiar que este surdo tem de pensar, Será que ainda estou surdo, e correu a bater com o punho na parede com toda a força. A única coisa que ganhou foi a certeza de que ainda não ouvia e uma forte dor no punho, que ninguém agride uma parede para sair incólume.
Relembrado o surdo da sua condição, ainda com o bónus da dor no punho para manter viva essa lembrança, sentou-se na cama, pronto a sentir pena de si próprio. Já era hora de um pouco de auto-comiseração, e durante dois minutos chorou. Avidamente, como nunca tinha chorado, nem em criança, alagando os olhos e as mãos onde recolhia a cabeça pequena. Dois minutos exactos foi o tempo que durou o choro, parecia cronometrado por relógio, à s tantas horas começas a chorar e à s horas tantas páras automaticamente. Neste tempo José conseguiu o impossÃvel, não pensou. Mesmo daquela maneira silenciosa que ele o costuma fazer, José não pensou. Foram os dois minutos mais pacÃficos que ele alguma vez sentiu em toda a vida, nem sequer os primeiros momentos desta surdez, nem sequer os primeiros pensamentos sem palavras, nunca em toda a vida a mente do José tinha estado tão vazia, parecia que toda a alma se escorria do seu corpo pelas lágrimas choradas com afinco. O corpo de José era uma casca, a paz do oceano PacÃfico, o sol da tarde de verão na praia vazia, outra imagem qualquer de pacifismo neste lugar.
E foi então que ele ouviu a minha voz. Tinha acabado de chorar e ouviu-me a descrever o pacifismo em que estava enterrado. Ah, se pudessem ver a cara do homem naquele momento, parecia que toda a face se contorcia num ponto de interrogação. Desferiu novo murro na parede para confirmar se voltava a ouvir e a minha voz não seria um princÃpio de pensamento normal, com a voz que era dele e que já não reconhecia. O resultado é que continuou sem ouvir o barulho do soco e a dor da mão dobrou de intensidade. Quem está aÃ, perguntava ele, e é inútil perguntar porque neste momento ele não me ouvia mais. Não que eu tivesse parado de falar, como o próprio leitor confere ainda continuo a escrever, mas este fenómeno não foi como o princÃpio, foi gradual. Minto, é gradual.
E o José repete, Quem é que está a falar, e eu acho desnecessário responder. Mesmo que ele me ouça não me vai perceber. Corre até à casa de banho para molhar a cara e garantir que não está a sonhar. Corre até à cozinha para se cortar com uma faca e ver o sangue, para garantir que não está doido. Corre para a porta no preciso momento em que a mulher entra e diz-lhe, Fala comigo, e ela fala mas ele não ouve. O que se passa, foi o que ela disse, o José não respondeu, embora tivesse percebido a pergunta pela expressão facial da mulher. Disse apenas, alguns segundos mais tarde, Nada, continuo surdo, Já suspeitava, responde-lhe Margarida, Mas estás branco, o que é que aconteceu, Nada, não foi nada, foi só um sonho esquisito, mas já passou, já estou bem.
Não foi um sonho. E o José voltou a ouvir-me.
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E a parte VII também já está escrita...