[Parte I aqui][Parte II aqui][Parte III aqui][Parte IV aqui][Parte V aqui][Parte VI aqui][Parte VII aqui][Parte VIII aqui]Quem diria que a surdez pode estar associada à paralisia. Não directamente, como é claro, mas a verdade é que José não sai do escritório vai para um dia. Não dormiu, não conseguiu, manteve-se um pouco em conversa comigo, mas, ao longo da noite, foi-me ignorando e eu também não estava para apoquentar o pobre surdo. No entanto, ouvia tudo o que se passava naquela cabeça, cada vez mais assustada e cada vez menos racional. De manhã, Margarida levou-lhe o pequeno-almoço que o homem não comeu. Pediu apenas, desta vez muito mais delicadamente, que o deixasse sozinho, que precisava de pensar, que precisava de perceber, que precisava disso tudo. Não tocou no pequeno-almoço que a mulher lhe tinha preparado com tanto carinho. Não se mexeu um centÃmetro na cadeira. Não fez absolutamente nada. Estava portanto paralisado. Não estando, claro está.
Porque é que ensurdeci, perguntou-me em voz sumida, rouca, quase que não ouvi a pergunta, mesmo sabendo o que ele ia perguntar porque, como já vimos, sou o deus deste conto, e no entanto, a sua voz surpreendeu-me pela desilusão que trazia colada. Que queres que te responda, respondi eu, não porque desta vez não soubesse o que responder mas porque estava genuinamente interessado em saber qual era a resposta que ele precisava de ouvir. Mas ele não sabia. Continuou a perguntar-me na mesma voz desaparecida, Porque me chamas amigo, Porque não havia de chamar se me recebes em tua casa e partilhas comigo todos os pensamentos e a minha voz é a única que consegues ouvir, respondo. Porque não respondes a nada do que te pergunto, só fazes mais perguntas, e com esta é que o José me apanhou, viu claramente para lá da minha omnisciência e da minha omnipresença, viu que eu não sei absolutamente nada, não sei nada de nada só sabendo pouco mais do que ele, Porque eu não te posso dar respostas às perguntas que tu fazes, ninguém pode, talvez nem mesmo tu, respondi, É a primeira vez que me respondes directamente, Pois é.
Com esta breve troca de palavras o surdo ficou em silêncio por mais algumas horas. As coisas que lhe passaram pela cabeça não variaram muito, O que fiz eu para merecer isto, será que estou a ficar louco, devia era ir buscar a faca e cortar já a garganta ou então atirar-me do prédio que é bem alto, de certeza que morria, mais valia morrer, estou a matar a minha mulher aos poucos, coitada, e outros pensamentos que tais, assustadores para alguém de racional intelecto mas perfeitamente adequados ao estado do José. Não tornou a chorar, nunca mais diga-se a tÃtulo de curiosidade, nem agora nem no futuro, na noite passada secou os olhos completamente e para sempre, são fonte que não torna a dar água e talvez isso seja de todos o mais triste dos sofrimentos do José. Não chorar, nunca mais, nunca mais lavar os olhos com sal, deixar a alma sair em água produzida humanamente, isto é um penar muito mais pesado do que não ouvir, porque enquanto se não ouve há outros sentidos para a comunicação, há as letras que se lêem, a lÃngua gestual que se pode aprender, a fala que mantém o seu lugar, só se perde a música e o ruÃdo mas ganha-se o silêncio e a paz, agora não conseguir chorar, não conseguir transformar emoções em fÃsico, não conseguir fazer aquilo que se diz os homens não fazerem, isso sim é uma pena demasiado grande para qualquer pessoa suportar, isso é suficiente para levar alguém à loucura ou para de lá não se voltar a sair.
O que acontecerá então ao José que para além da surdez que já vimos se vê agora incapaz do mais básico dos meios de comunicação, o primeiro que aprendemos ao sair da barriga das nossas mães, chora que a mamã dá, o que será do pobre surdo de pedra que não voltará a chorar nunca mais, isso é o que ele me pergunta a mim, sem consciência das consequências de não mais verter uma lágrima que seja, até orgulhoso disso, como se a não produção de choro fosse sinal de que a sua condição estava já processada pela mente, quando na realidade era exactamente ao contrário. O que vai ser de mim, pergunta-me, O que queres dizer, Quero dizer como vou viver agora, sem ouvir, Não estavas tu contente a princÃpio por te veres livre do ruÃdo do mundo, Eu estava estúpido, estava distraÃdo pelo som maravilhoso do silêncio, mas este silêncio é ensurdecedor, não consigo pensar em mais nada senão nisto mesmo, estou farto, não ouço mas tenho a certeza que do outro lado da porta a minha mulher está a chorar por mim, diz-me, consegues ouvi-la a chorar por mim do outro lado da porta, Consigo, respondo envergonhadamente, Como podes deixá-la chorar por minha causa, Não posso brincar com o que as pessoas sentem, nunca o fiz, nunca o farei, Tu não serves para nada, não tens respostas, não tens poder, não tens nada, és um nada, desaparece da minha cabeça, se fui condenado ao silêncio deixa-me apreciar a minha sentença em paz, não posso condenar o pobre surdo cada vez mais endurecido pela sua condição e nesta conversa passou mais uma noite inteirinha no escritório sem comer nem dormir nem mexer um centÃmetro.
No dia seguinte, já lá vão dois desde que esteve noutro espaço, quando a mulher abria a porta para lhe falar ele disse imediatamente, Não entres, mesmo antes de lhe ver as feições. Margarida ficou sem saber o que fazer, Não entres, tornou José, Perdoa-me, mas não te quero ver na cara as lágrimas que choraste por mim, e Margarida chorou ainda mais ao fechar a porta, percebeu assim que a surdez estava a comer o seu esposo por dentro a destruir-lhe a pessoa que conhecia e a matá-los aos dois, Porquê, gritou, de tal maneira que os pássaros que pousavam na janela permanentemente aberta esvoaçaram. José engoliu em seco, não ouviu nada mas aquele entendimento mÃstico que os unia fazia-o saber exactamente o que Margarida tinha feito. Fechou os olhos e repetiu para si mesmo, tenho de fazer alguma coisa, tenho de ir ao médico, tenho de me internar, estou a ficar doido, estou sem saber o que fazer, mas tenho que arranjar maneira de resolver isto, tenho de me mexer, não posso ficar para sempre aqui sentado, mas não quero mexer-me, tenho medo do mundo, já não sou eu que habito este corpo, é um destroço qualquer daquilo que eu fui, já não penso como as pessoas, penso como os animais, mas tenho de fazer qualquer coisa, diz-me o que tenho de fazer, dirigindo-se para mim, Não sei amigo, Não me tornes a chamar amigo, Porquê, perguntei, Se fosses meu amigo aconselhavas-me, O único conselho que te posso dar é o único que não queres ouvir, E qual é esse então, É nunca pedires a alguém que decida por ti o que tens de ser tu a decidir, Não és meu amigo, Sou a única coisa que tu tens dentro de ti, Então não tenho nada, Se tu o dizes, é porque não tens. E neste momento o José parou de ouvir a minha voz. Não consigo lutar contra lógica mais perfeita, se ele não pensa, eu não existo, uma máxima de Descartes ligeiramente alterada, lembramo-nos todos que o original era o
Cogito ergo sum, ou em português corrente, “Penso logo existoâ€, o José não pensa, eu não existo, ou será que eu não penso e ele deixa de existir, quem é o criador e a criatura nesta história ainda está por definir, estando é claro definido desde o inÃcio, o José é que não sabe e a ele se junta o leitor. O que o José vai sabendo, e cada vez com mais certeza é que está a enlouquecer, já tem o aspecto, já tem o cheiro se nem sequer para ir à casa-de-banho o homem se levantou, e acima de tudo já tem o pensamento irrequieto que salta de um lado para o outro sem se parar em nada de concreto e simples, de génio e de louco o José tem mais do que apenas um pouco.
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O fim vem já a seguir.