marcopintoc
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« em: Agosto 15, 2008, 10:27:58 » |
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A chuva vinha batida pelo vento que trepava a cidade a partir de um Tejo revolto e cinzento; dos lados de Belém levantava-se uma camada humedecida que cortava os ossos e trazia o cheiro da doca e dos cadáveres afogados em outras tormentas. Abrigados sobre o curto telheiro, os dois vigilantes ao serviço do Zé da Neve perscrutavam as grossas gotas de chuva e a escuridão que , até agora , tinha trazido poucos clientes. Golas levantadas, gasganetes encolhidos gola adentro , cigarros acesos com dificuldade ; mãos em concha , chamuscadas por uma brisa malandra que escapava entre os dedos. As armas pousavam, tranquilas e reluzentes ,de encontro à parede da barraca. De vez em quando uma chávena de café era servida por um braço tatuado que entreabria um bocado de calor e luz vindos do interior. Eram cerca de duas da madrugada quando, iluminado sobre o último candeeiro na fronteira entre o bairro social e a construção clandestina, o vulto surgiu. Caminhava lenta e atabalhoadamente, uma camisola encharcada, capuz, mãos nos bolsos. Os braços ,colados ao corpo, adquiriam uma pose de matraquilho quando alguma irregularidade do terreno desviava o passo inseguro. Os experientes guarda-costas do traficante reconheceram imediatamente a marcha do toxicodependente necessitado. Por precaução as armas foram empunhadas. A proximidade ,agora maior, revelava que o caminhante era de baixa estatura e extremamente magro. Um dos guardas gracejou para o companheiro: - “Zombie” De facto havia mais de morte do que de vida naquele rosto sulcado por uma velhice precoce de natureza opiácea e todas as restantes marcas da vida de um miserável arrumador de carros. É isso que o vulto faz; arruma carros, corre em frente a monovolumes plenos de classe média, um braço apressado para o lugar que deverá valer um euro; o outro repousando junto ao peito, já trémulo, ansioso pelo ferro. O nome é Rui mas no bairro todos o conhecem por Picas. Um dos guardas da barraca reconheceu-o. Um gesto tranquilizador baixou as armas: Fungando de forma muito sonora o toxicodependente estancou em frente aos dois guardas. O movimento de inspirar foi acompanhado por uma pequena aparição, breve, quase ausente de vida dos olhos vidrados. Balançando o corpo ao sabor do vento a voz gasta de Picas pediu: - Boa noite. Queria falar com o Senhor Zé. Os dois ciganos de expressões endurecidas desfizeram-se em uma sonora gargalhada. - Picas! Queres falar com o Zé para que? – o homem que falou deteve-se para se rir mais um pouco – Negócio? Os olhos que já tantas vezes se tinham tornado agulhas rogaram, com suplício: -Não é negócio. Preciso de falar com ele. Se faz favor. Diga-lhe que é o filho da Dona Arminda. Algo de momentaneamente terno atravessou o olhar do homem da “shotgun”.Arminda era uma instituição do bairro. Todos a respeitavam, era famosa por tratar todos com igual carinho; agarrados ,dealers, homens de tasco , mulheres da vida . Famoso também era o surgimento de um lençol branco na água furtada de sua casa. Arminda avisava a vizinhança que a bófia vinha a subir. - Espera aí – ordenou e dirigiu-se para o interior da barraca.
Lá dentro a luz era baixa ,o aquecimento estava ligado com bastante intensidade. Sozinho, no seu eterno cadeirão, Zé da Neve dormitava. Um chapéu negro com uma faixa negra de cetim cobria o rosto que desembocava na branquíssima barba. Ressonava a bons pulmões. O homem hesitou, e já se preparava para se retirar sem incomodar o patrão, quando a voz arrastada inquiriu: - O que é que se passa? – Uma mão tisnada removeu o chapéu do rosto e o olhar verde de Zé fitou o seu colaborador. O homem disse: - Está lá fora o miúdo da Arminda. O Picas – agora algo em tom de medo – aquele que brincava com o seu filho. As íris contorcidas do Zé da Neve revelaram a chegada de uma memória dolorosa. A voz apaziguou - Deixa-o entrar – o corpo vestido de negro retesou-se sobre a cadeira e postou-se com a dignidade cigana que sempre exibia perante os outros. Da mesa baixa quatro pacotes de grama foram removidos. «Para não haver mais fomes» pensou Zé da Neve. Momentos mais tarde, pingando e apresentando uma postura muito encolhida entrava na sala o Picas . Um calorífero que se encontrava perto de si deu-lhe a primeira sensação de conforto da noite. A pele de moribundo corou ligeiramente: - Boa noite , Senhor Zé – cumprimentou , havia respeito e receio no tom O braço do cigano convidou: - Senta-te miúdo. Que fazes por aqui? – Na voz de Zé da Neve havia paternalismo, uma nota acima daquele que costumava usar. O vigilante que ainda permanecia na sala arrebitou o sobrolho. Desconhecia aquela forma de falar. Sem tirar as mãos dos bolsos o miúdo, Picas , sentou-se . Tresandava a caixote de lixo de traseira de restaurante; o dorso agitava-se em constantes convulsões. Zé da Neve reconheceu imediatamente os sinais da ressaca de heroína em estado avançado. Mas fez de conta que nada notara: - Estás com frio? – os olhos verdes disseram “eu sei” e o olhar de Picas aterrou humilhado na alcatifa com motivos garridos. «Ainda há vergonha em ti» - isso agradou ao cigano. - Senhor Zé . Não lhe vou mentir. Preciso de comprar alguma coisa – três grossas gotas de suor frio desceram a testa – Estou mal, Senhor Zé , muito mal. A mão rude de Zé da Neve cortou o lamento com um violento gesto de desprezo e raiva: - Rui ! Tu ,que brincavas com o meu filho ,agora vens-me comprar droga – uma grossa cuspidela no chão – Merda de Vida! O dedo inquisidor prosseguiu: - Sabes eu não devia ... – o rosto crispou-se na certeza que se o miúdo não levasse o produto dali em outro sitio o encontraria. O discurso foi corrigido com um sorriso totalmente falso feito para vender camisolas de contrafacção na feira de Carcavelos. - Ouve. Aqui o Leonel – o cigano procurou o colaborador com o olhar, a voz elevou-se ao volume do pregão: - Leoneeel – em passo apressado um individuo, camisa negra, muitos anos de rua na expressão serena e atenta, entrou. Na mão trazia a chave do “armazém”. Zé da Neve ordenou: - Dá uma grama da “boa” aqui ao miúdo – Uma imensa excitação agitou o toxicodependente, um cão de Pavlov opiáceo, hipnotizado pela promessa do alivio. Porém a frase do homem de barba branca fora dita na língua dos “dealers”. A “boa” significava produto cortado com inúmeras substâncias para atenuar a pureza. Era a droga que se vendia a otários e gajos com aspecto de último caldo. - Espera ai –Com um gesto de braço, Leonel ,manteve sentado o Picas que já impulsionava o corpo ,pronto a farejar o mais ínfimo grão de bom pó. Os dois minutos que o colaborador do Zé demorou a ir ao “armazém “ e retornar pareceram ,aos músculos hirtos e à dor com promessas de vómito ,uma imensa eternidade. Contudo, algo aconteceu. Lá dentro no armazém. As mãos experientes de Leonel cometeram algo que lhe era raro. Um erro. A mão esqueceu a chegada de uma remessa recente de puríssima heroína dos Taliban e empacotou uma generosa e potente dose desse pó acastanhado ,cicuta das papoilas. Quando recebeu a dose o que restava de um olhar na face de Picas cintilou em comoção. Uma pequena gota de urina escorreu para as, já imundas, cuecas. Queria ir, já. Dar A bomba Os intuitos de Zé da Neve eram outros e Picas teve que sentir a ressaca crescer um pouco mais, enquanto os conselhos do experiente cigano eram proferidos em voz pausada: - Tens ai para hoje e para amanhã - um certo optimismo animou o discurso – Miúdo , devias ir tratar-te. Olha. Se atinares e ficares limpo o Zé arranja-te um emprego. Aqui, comigo – mas havia condições, o leve levantar das mãos dizia o “mas” : - Não te picas , só fumas , uma vez por semana. Na tua folga – No intimo do Picas chocavam-se os desejos de se injectar rapidamente e a promessa de uma vida menos horrível nas palavras do Zé. A sua cabeça fervilhava na sede de aplacar a dor e a necessidade. Dentro de si uma voz de aflição suplicava – ‘Bora,’Bora. ‘Bora dar” -o ritmo crescia a cada cãibra Por outro lado, no intervalo da dependência, alguém que soava à sua mãe dizia que não duraria muito na vida que tinha. “Mas hoje dás , atinas amanhã, só hoje ,só hoje , um remédio fixe , dormes calminho e depois começas a atinar “ – a voz da ressaca ganhou a guerra e um “boa noite “ extremamente precipitado e um passo de quase corrida devolveram o Picas à rua. Estupefacto, ofendido, o Zé da Neve sentiu um arrepio de mau presságio percorrer-lhe a espinha. Recolheu-se numa pose de solidão e o dedo no controlo remoto ligou a música de Camerón de la Isla. A canção lamentava que ninguém como o cigano conhece a morte de tantos filhos. De volta a chuva uma violenta contracção intestinal demoliu os planos de Picas. Entre um caixote de lixo e um contentor de atulho;caixote de frigorifico feita sala de chuto. Esqueceu o emprego que o Zé oferecera , a mão tremula que agitou a chama curta do isqueiro na colher deixou de ter vontade de abrir a porta da casa da mãe, o elástico foi apertado com a força que restava , momentos antes essas mesmas mãos tinham atirado um quantidade generosa para a solução cítrica . A dose era generosa nos critérios da zurrapa de poeira que a sua miserável condição lhe permitia adquirir. No puro pó do Zé da Neve a dose era letal. E foi-o. Pequenas avalanches de morte correram pelas artérias já calcinadas pelas correntezas diárias de veneno. O coração disse que ia explodir e Picas morreu, num enorme flash, que o fez sorrir e tornar-se um cadáver apresentável. No dia seguinte o bairro ,em respeito à dor gritada em ais de grande desgraça pela Dona Arminda ,acompanhou o cortejo fúnebre. A voz correu rápida pela manhã, pelos tascos , pelos caixotes onde havia drogados que viveriam mais um dia, pelos colchões pingados das putas , pelo estendais de gente velha. Até a bófia soube ; o carro de patrulha abalou por umas horas. O Picas voltava a ser, na voz do povo, um bom rapaz. No cemitério, oculto pela sombra das árvores, o vulto envolto no mais profundo luto de Zé da Neve tremia em convulsivos ataques de choro e lamento .Os seus queixumes gitanos deslizavam pela ligeira inclinação do terreno e embrulhavam-se com os gritos insanos da mãe abraçada ao caixão. Dos olhos nem um farrapo de luz trespassava, grossos óculos escuros “Ray Ban” cobriam a nascente de uma grossa torrente de lágrimas. Sentindo a desgraça ,como só sabem sofrer os da sua raça, a alma do cigano cantava o refrão do lamento: « Mis hijos , tantos que se fueram “
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