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Autor Tópico: Ofélia  (Lida 1731 vezes)
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Mel de Carvalho
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"abraça o conteúdo e não a forma" Saint-Exupery


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« em: Janeiro 18, 2009, 11:10:01 »

“…Vês, meu Bébé adorado, qual o estado de espírito em que tenho vivido estes dias, estes dois últimos dias sobretudo? E não imaginas as saudades doidas, as saudades constantes que de ti tenho tido. Cada vez a tua ausência, ainda que seja só de um dia para o outro, me abate; quanto mais não havia eu de sentir o não te ver, meu amor, há quasi três dias!â€
Carta de Fernando Pessoa a Ofélia, 19/02/1920

***

Projectou-se na montra, turvou-se com os trapos dependurados em época de saldos no manequins de fibra mas não se viu. Havia muito que deixara de se ver, ou melhor, do que via, pouco ou nada reconhecia. Um nevoeiro de Inverno atravessava as quatro estações, anestesiava-lhe memórias e astenizava-lhe o corpo que, sem vontade progredia nas ruas da cidade. Naquele dia chovia uma chuva porca, lamacenta, que enodoava tudo. Subiu as golas, empurrou a cabeça para cima em direcção ao alto, o casaco de xadrez recém comprado a lamber-lhe os joelhos, as calças de ganga justas a denotar-lhe as formas. O cabelo a lamber a cinta. O cabelo fogo, ela ainda. Olhou de novo. Viu-se na vitrina exterior do Centro Comercial. Confundiu-se com a manequim. Meio século de vida. Olhou o relógio: seis da tarde, sexta-feira. Em seu redor tudo parecia vivo num desfile de rotinas e de gentes. Menos ela. Abriu o carro, colocou o ticket do parquímetro visível. Maquinalmente fechou-o. Tinha agora uma hora sua. Só sua. A tosse invadiu-lhe o peito, a espasmos. Rapidamente procurou o pacote de lenços de papel. Assoou-se. Os tímpanos a latejar, a sensação de vazio, de vácuo. Na expectoração o sangue vivo já nem a assustava. Sangrava de vários orifícios, tantas vezes …A garganta doía. O cansaço permanente. Horas antes duas mensagens. Curtas, incisivas. Depois o toque - “Ofélia, queria despedir-me de si, vou de fim de semana, mas não sem antes saber se está melhor, lhe dar um mimo …â€. Minutos de sol no frio que a vestia. Cúmplices, brincavam com o fogo. Corriam rumores de que trepava as janelas como um gato, que padreava muros, que subia árvores sem folhas em busca de pássaros desabrigados que fazia temporariamente seus. Corriam rumores de que das sarjetas as ratazanas acorriam ao som mágico da flauta e se fundeavam no rio, no lençol freático de suas águas. Era necessário dragar o rio. Limpar as margens, para que voltassem a ter vida. As barcaças estavam paradas sem timoneiro e sem carga. Não se exploravam as areias do rio, o mar salgado invadira o mar da palha. E as aves eram sempre de arribação.

De novo a tosse, a vertigem. O chumbo da noite e o céu a cair-lhe em costas. O peso do céu: - “ligo-lhe de manhã, quer?â€. Queria. Queria sim. Queria as migalhas, que fosse. Queria sentir que pelo menos ele se lembrava dela. Que pelo menos ele a não confundia com os manequins do Centro Comercial. Chovia agora mais forte. Abrigou-se na lona de uma das lojas. Outros transeuntes imitaram-na. Eram já muitos. Quase que a acotovelavam. Detestou ter ainda olfacto. Por fim, estendeu um braço, a palma da mão aberta. Não chovia já. Rapidamente retomou a marcha, rumo ao nada. Os demais seguiram-na, a rua voltou a encher-se. Desejou a feira de Outubro, o carrossel, o cheiro dos coiratos e dos polvos, desejou o rodopio de muitos anos atrás, quando ainda acreditava na força centrífuga dos corpos. E das almas. Desejou os toiros soltos na rua, a areia molhada, o atrevimento, a caliça solta dos pátios da escola. Desejou ser ainda a outra, a convicta. E os cabelos louros e os olhos de mar. Entrou no café. Pediu uma bica - “em chávena escaldada, por favorâ€.
Abraçou a chávena entre as mãos, demoradamente, “ninguém morre de vésperaâ€, a não ser o peru de Natal. Quando é que ela tinha morrido? E onde se morre primeiro? No amargo das folhas de ciprestes, na avenida larga dos ciprestes por onde em cortejo fúnebre deslizam os caixões sem vida que levam os restos dos que amamos? Ou quando as janelas dos vivos se fecham em torno do nosso olhar? E a solidão nos chicoteia em noites de lua cheia? “Era Inverno na estação dos pássarosâ€â€¦
Um rapazola entrou. Só o viu quando a mochila descaminhada tombou sobre si. Num ápice o café espalhado na mesa. O empregado apressado. O esfregão a absorver o negro e a vontade de ali estar.

Não disse nada. Levantou-se, saiu para a rua. Todas as luzes já estavam acesas. Era tempo de regressar a casa. Aproveitou os últimos minutos de uma falsa liberdade. Despediu-se lentamente de Ofélia projectada agora em palco, acéfala. Noutro palco.

***

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Tag: contosdemulhers
« Última modificação: Janeiro 19, 2009, 13:53:56 por Mel de Carvalho » Registado

Mel de Carvalho
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22segundos
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« Responder #1 em: Janeiro 18, 2009, 18:03:16 »

Cara Mel:

Esperar-se-ia que a fuga fosse para um jardim isto é, que aquela hora de liberdade fosse para o escape, a felicidade (mesmo que breve) e a descontracção, finalmente (ainda que fugazmente) alcançada.
E contudo, a fuga é para o cinzento; para ocasionais sensações de calor, concórdia interior e bem-estar, entrecortadas p'lo tormento de lembrar de onde se vem e para onde se retorna, p'la agitação de se deambular para os sentimentos incómodos da frustração, do desamor e do cativeiro.
Esta Ofélia lembra-me essencialmente como são ilusórias e vãs as certezas de que se possa fugir da infelicidade - roubar ocasionalmente momentos de rir. Muitas mulheres se enganam, e se enganam a vida inteira, sofrendo dessa escravizante (e alienante) ilusão. É um ópio como outro, embeber-se a vida da convicção comodista de que alguns minutos de felicidade (se de facto for genuinamente felicidade) tornam alguém feliz. 

O único modo de se ser feliz, creio, é abraçar a felicidade cortando amarras com o que a possa constranger.
Em ser feliz ou infeliz julgo que não há cinzento, assim-assim ou mais ou menos. Ou se é ou se não é. E é preciso coragem para se ser, para além de se procurar aquietar o inaquietável com alguns instantes de "e se assim fosse?".

Uma hora Mel? Ao ler o conto pareceram segundos. Aposto que para a Ofélia foram amargos nano-segundos. Infelizmente é um mecanismo bem comum... a fuga... a ilusão... a promessa no minuto 1 e o reviver da condenação no 60...

Um abraço e obrigado sempre, pelos mundos que os mundos que relatas abrem!

22segundos. 
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Mel de Carvalho
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"abraça o conteúdo e não a forma" Saint-Exupery


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« Responder #2 em: Janeiro 19, 2009, 13:58:39 »

22 seguntos,

muito pertinente o seu comentário. a felicidade, creio, é o que todos buscamos. todavia, seres existem que se alimentam de ilusões e se mostram incapazes de romper ciclos. mesmo assim, será que não é uma forma de serem fugazmente felizes? não sei, de todo. aliás, "só sei que nada sei...," sempre.

abraço maior
***

Conceição,
é sempre um prazer saber que lês os meus textos. abraço.

     a ambas, o meu vivo agradecimento.

Mel
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Goreti Dias
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« Responder #3 em: Janeiro 19, 2009, 14:35:47 »

Nunca se sabe bem se a felicidade está mais nuns instantes de ilusão, numa fuga, no romper de ciclos ou na permanência em um deles... Tão pouco saberemos se a felicidade existe de verdade ou se criamos o conceito em algum momento de evasão. A Ofélia, desta hora de fuga, apenas lhe restará a lembrança de que esteve algures...até ao tempo em que não estará mais.
Mais um conto cuja leitura sabe muito bem.
Bj
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Goretidias

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E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
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Boas leituras!
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Boa noite!
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Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
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Boa tarde a todos.
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Boa noite feliz para todos.
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