um poema como um grito

[Mel de Carvalho]

preciso urgentemente
encontrar
um braçado de gestos limpos
um atado de frutos puros
e a paz
a paz que vejo ali ao longe
içar-se destemida no olhar daquelas gentes
que sulcam várzeas de ferro
vindas aos bandos d’azul
por dentro das avenidas

metalúrgicos
operários
pescadores
campesinos
doutores
homens de todas as raças, credos, cores!

preciso urgentemente elevar o braço
o punho erguido
cerrar abrindo os olhos à luz
e gritar ao mundo o mundo que me corre
como um rio profundo e arriscado
pelas veias, pelas periferias dos dedos,
estas que trauteiam em teclas
teclados imperfeitos
palcos e odisseias maiores
tais tamboretes
tambores
ou pianos sustenidos, outrora mudos.

não me calarás mais a voz
não me atarás mais o ventre em gelosias de vidro
não me cortarás mais os pulsos
em ginetes de luto

preciso urgentemente
dar voz à pomba e à cotovia que na lezíria s’agitam
à ceifeira flectida e erecta vertical na vida
aos gemidos aflitos das cordas duma guitarra

e dar crianças à escola
colocar-lhes romãs e rosas na sacola
dar-lhes um porto de abrigo, um poema como um grito,
o amor de amar na dor
um povo
um Homem
e outro, um semblante perdido para além do infinito.

             não, não calarás a minha voz!!!
___

Poema publicado na Revista Seara Nova, 2008

[cleo]

Querida Mel
A tua voz é preciosa demais para se calar...
ai de quem se atreva a tal!
Teria de se haver comigo >

Mais um daqueles que me fazem sentir pequenina...

Beijo

[Mel de Carvalho]

Cleozinha,

Mil obrigadas. Recoloquei aqui este poemas no seguimento de um outro que hoje publiquei "não te demitas".

Como todos sabem (ou quase ...) sou da área social. estes temas são-me, desde sempre, muito caros.Não me calarei, Cleozinha. É a única arma de que desponho: as minhas palavras.

Beijos muito grata,
Mel

[josé antonio]

Boa noite Mel,

Antes do mais parabéns pelo seu texto, mas não acredite que não " calarão a sua voz".
Cada vez é mais fácil calar as nossas vozes e da forma mais incrível que se possa imaginar.
Já personifiquei desafos - muito para além de poemas - em reuniões de direcção de empresas, com discurso acutilante e murro na mesa - pra me ouvirem! E nada resolvi
senão - e a mais importante - consciência pessoal e honestidade de mim.
A corrupção alastra como as ervas daninhas e não temos tempo nem herbicida capaz para as aniquilar.
Suponho ter lido os poemas que postei sobre Abril.74, uns cinco ou seis e muitos mais que escrevi e não postei.
Não vou postar mais porque fraudado pelos que mais dele precisam e dele se esquecem.
Deixei de dirigir uma fábrica de metalurgia em 15 deste mês...
Trocamos lágrimas de apreço entre trabalhadores e chefia, mas todos homens e inocentes do sucedido.
Vivi Abril, estou disposto a reviver Abril noutro mês qualquer, mas acredito muito mais no meu cão que noutro Abril ou homem qualquer.
O combate futuro terá de ser com pão e não flores!
Abraço comovido.  

[vilde]

"preciso urgentemente
encontrar
um braçado de gestos limpos
um atado de frutos puros
e a paz"

Espero que nesse grito,
encontre a beleza que procura.
Bj
vilde

[Abgalvão]

Que poema excepcional meu Deus! Cara Mel de Carvalho, é claro que ninguém calará a sua voz nem apagará a sua escrita.
Parabens poeta!
Cumprimentos
 

[Dete]

Mel:

preciso urgentemente
dar voz à pomba e à cotovia que na lezíria s’agitam
à ceifeira flectida e erecta vertical na vida
aos gemidos aflitos das cordas duma guitarra

Faltam-me as palavras para dizer seja o que for...
é um grito...magnífico.
Um beijo e os meus parabéns!

Dete

[Mel de Carvalho]

Sem palavras que possam agradecer as vossas. Este poema pelo que encerra, é-me muito importante: Liberdade, Paz e Direitos Humanos.

Bem-hajam
Mel

[Goreti Dias]

"preciso urgentemente
dar voz à pomba e à cotovia que na lezíria s’agitam"

Um poema no tempo!

Beijo