3º evento ou 1º penduricalho do coração
Acordei de manhãzinha cedo e ainda cheio de sono não percebo bem porquê pois dormi quase nove horas e não tive, que me lembre, sonho algum. Deve ser por isso mesmo. Ouvi dizer que os sonhos nos fazem muito bem.
Pus-me depois a meditar sobre o penduricalho que devia usar na minha próxima descrição.
E resolvi utilizar um que pende demasiadamente do lado direito do coração, direito para quem esteja dentro dele, é de ver.
Vejamos pois o que o penduricalho diz:
Que estou enganado sobre tudo o que escrevi até agora. Que nada daquilo é o sonho que eu, sub-repticiamente, queria que vomecês julgassem que era. Que nenhum sonho se processa daquela maneira . Que em todos os sonhos nós matamos a nossa mãe ou, pelo menos, o nosso pai ou um tio ou uma tia se eles é que fizeram de pai ou mãe . Que na nossa descrição nem a mãe nem pai, nem o tio nem a tia sofreram a mais leve beliscadura e que por tanto, por conseguinte, o nosso texto não passava de uma droga, que era, na verdade, um texdroga ou uma drogtexta .
Não me zanguei com aquilo . Efectivamente eu mesmo, ou seja o lado monolÃtico do meu cérebro, concordava com cada palavra, ponto por ponto.
Como é que eu ia descalçar aquela bota ? A verdade é que eu não matara nenhum dos meus progenitores nem tinha tios ou tias que pudesse matar e não podia dizer o contrário porque a verdade acima de tudo, acima de tudo a verdade.
Bom, se é preciso matar alguma coisa vou contar como é que, com a ajuda do penduricalho, tive de matar o gato da minha vizinha. Foi o caso que o mesmo, maldito, resolveu vir parir os seus gatinhos dentro do meu quintal. Descobri-o infelizmente já muito tarde quando ele, ela, já tinha parido meia dúzia de gatitos . Estava enfiada no meio da lenha que tenho amontoada a um canto do quintal e mal me tentei aproximar começou a bufar como uma danada . Afastei-me prudentemente mas, naquilo que na altura me pareceu o dia seguinte, voltei lá. Ela afastara-se certamente para procurar comida em algum lado e eu aproveitei para me aproximar do gatinhos, peguei um deles e pû-lo, por cima da parede, no quintal do vizinho que era onde eles pertenciam.
Voltei ao monte de lenha e paguei outro gato. Foi então que a gata apareceu e se atirou a mim enraivecida.
Opus-lhe o braço direito que sacudi nervosa e violentamente e foi bater com força no muro do jardim que estava perto.
Ficou um bocado assarapantada e eu aproveitei esse facto para me desfazer do gatinho que tinha na mão esquerda e apanhar um pau que estava ali à mão de semear.
Ainda antes que a gata se levantasse mandei-lhe uma bordoada que a imobilizou definitivamente.
Peguei então nela e nos outros gatitos todos e foi tudo para o quintal do vizinho aonde pertenciam.
Vejamos o que dizer desta descrição :
Em primeiro lugar usei por engano um penduricalho do coração em vez de um penduricalho da mente .
Surpreendentemente o penduricalho do coração foi mais violento do que os penduricalhos da mente .
Este evento não aconteceu à noite mas de dia, embora num dia bastante chuvoso, deve dizer-se.
O evento deixou-me com uma fome de morrer .
Geraldes de Carvalho