22segundos
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« em: Outubro 19, 2010, 08:05:21 » |
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(Quando submetido continuadamente, insistentemente, ao estilhaçar da alma, também o corpo quebra. É por isso que se consegue ver, se se souber ver, quem é aquele que vive esmagado pela tristeza. A somatização é um reflexo demasiado umbilical – somos de facto, muito mais do que gostarÃamos, exactamente aquilo que parecemos ser. Por isso, quem for atingido por uma forma extrema, persistente de tristeza, usa-la-á necessariamente no corpo – não o poderá evitar, pois a tristeza rivalizará com a própria carne para se fazer o sentido essencial da materialidade de quem sofre. Se não temerem sabê-lo, basta pois que olhem com olhos de ver: verão tatuado na pele de quem se extinguiu pela tristeza, aquilo que a própria dilaceração da alma é. Vê-lo-ão também através da anatomia, como se nela se desenhasse a preto sobre o branco, o testamento exacto da vida.
No rosto, os olhos escuros, ausentes de brilho, e a pele baça, caÃda e pesada, mostrarão sempre, rebeldemente, que é desalento aquilo que enche a vida. No tronco, as costas arqueadas, os ombros descaÃdos e os gestos circunscritos, como que limitados por cordéis demasiado curtos, mostrarão que os dias se fazem, por mais que haja contradição no debate, de uma agonia demasiado pesada para se poder sacudir para longe. Na fala, as palavras arrastadas, o prolongar dos silêncios e o rastilho curto, demasiado curto, para a ira e a agressão, para o abandono e a demissão, dirão como tudo é tão insignificante, ante a amplitude da dor. Já as pernas revelarão facilmente que se sustêm a contragosto, prontas para abandonar o tronco à sua sorte, pois desistiram de o considerar. Já as mãos mostrarão com clareza como perderam o vigor da preensão, porque o que retém não significa mais que o próprio vazio. Mas os pés, ah os pés, esses dirão mais, assim sejam ouvidos. Eles explicarão baixinho através da marcha, em jeito de choro persistente, monocórdico, de carpideira, que caminham apenas para onde devem e não para onde a alma os impele. Eles dirão aliás que é por isso que se arrastam como os pés de almas penadas, com uma dificuldade cada vez maior: é que sabem que é certo, como se de uma maldição se tratasse, que cada passo que completem terá eternamente, crescentemente, o peso de um corpo inteiro que resiste, tanto quanto possa resistir, pois a caminhada empreendida é e será sempre contrária ao sentido do coração, não havendo como inverter a marcha.
Querem conhecer a tristeza? Observem o corpo – lerão a alma.)
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