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Autor Tópico: Vassili doente  (Lida 2783 vezes)
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marcopintoc
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« em: Maio 26, 2008, 22:40:26 »

Lisete levantou a voz e dirigiu um olhar entediado à figura alta e trémula que se encontrava do outro lado do guiché:
- Preciso do cartão de utente. Está a perceber? Sem cartão não posso fazer nada.
A face ,encharcada num suor pouco sadio, de um homem eslavo de meia-idade contestou, depois de rebuscar nos vocábulos do seu curto tempo em Portugal:
- Doente. Senhora. Vassili  muito doente.
O turno da noite no grande hospital era o conceito de inferno para Lisete .Os bêbedos , os estropiados no asfalto , o quase cadáver octogenário que a  família vinha depositar estrategicamente antes da época estival. Das centenas de milhares de lares nos concelhos assistidos por aquela unidade ,os piores e mais sujos casos desembocavam sempre na porta das urgências no decurso do  turno da noite.
Eram quatro e meia . Estava cansada. Apenas aceitara voltar aos turnos de fim-de-semana e noite a conselho da sua amiga Elisa. Na secção de pessoal ouvira-se falar em regime de mobilidade e que era melhor ser mais pró qualquer coisa para evitar chatices. Por isso aqui estava, cheia de sono. E agora mais um chato de leste. Daqueles que mal sabem falar . E sem cartão.
Dois nós de dedo delicadamente bateram no vidro insistindo:
- Senhora, por favor. Pouco tempo Portugal. Cartão não
O carrapito de Lisete espevitou-se e repetiu:
- Sem cartão não ! Niet . Percebe ?
Vassili não entendia. Crescera com pouca comida e uma vida sem grandes confortos. Mas sempre houvera médicos. As pessoas estavam doentes e havia médicos. Lá, em Kiev.
Não era um homem rude, fora educado para ser professor de música, mas os acordes da betoneira e da montagem do andaime eram mais sonoros e por isso viera, um ano depois do cunhado , para Portugal. Tinha no bolso o papel de processo que lhe custará três dias de espera no serviço de estrangeiros, mas parecia que para a senhora do hospital não servia. Falava do cartão, do cartão.
Havia muitos dias que se sentia mal. Comia pouco, bebia algumas minis e vivia num quarto com mais quatro compatriotas e um romeno. A sua disciplina férrea permitia-lhe enviar quatrocentos euros por mês para a sua esposa e filha. Mas comia pouco e aceitava sempre as horas extras. Tinha medo mas aceitava. Tinha medo desde um dia em que , no alto de um quinto andar , o andaime parecerá  fugir e as pernas tremeram . Do cansaço, da fome.
Tinha ido trabalhar sempre mesmo sentindo-se mísero, tinha febre mas tentava enganar-se molhando constantemente a cabeça e o torso. O estômago era uma chaga ardente que não suportava um golo de Sagres. Começara a beber água. Os colegas riram-se dele. Hoje, ao sair do trabalho , a caminho da paragem do autocarro o vómito viera , havia pouco para sair,mas o que havia trazia sangue. Decidira vir ao hospital.
Perante a recusa permanente da funcionária hospital recuara um pouco cedendo o seu lugar a um rosto ensanguentado de uma briga de bar. Tinha cartão , entrou.
Enquanto tentava estabelecer de novo contacto visual com a ocupada funcionária, que não desgrudava o olhar do computador ,uma ambulância, em sirenes de goela aberta, parou abruptamente junto à porta. Gerou-se um burburinho, um maqueiro entrou a correr levando a sua frente um jovem negro, de não mais de quinze anos, que apresentava ferimentos de bala no abdómen. O tremor nas pernas anunciava momentos finais. Atrás ,a um passo mais lento, outra maca circulava .Totalmente coberta por um lençol, encharcado em  sangue também, de lado pendia um braço já sem vida.
Vassili baixou a cabeça em respeito aos mortos. Olhou para o átrio e percebeu que não conseguiria falar com a senhora do guiché. Uma pequena multidão de jovens vestidos em cores iguais, dois policias e uma negra e gorda mulher em pranto incontrolável ocupavam todo o espaço do balcão. Lá fora ouvia-se o chegar de carros potentes em grande velocidade.
Foi ver o que se passava.
No exterior  quatro carros pintados de negro e com aspecto desportivo estavam perfilados lado a lado. Junto a eles cerca de uma dúzia de indivíduos negros olhavam em frente ,de braços cruzados. Outros descreviam um vai e vem desconjuntado num curto espaço de dez, quinze metros.  Um dos carros emitia uma cintilação roxa da parte inferior. Vassili acho que a cor era igual à do lenço atado à cabeça do imberbe na primeira maca. Reparou então que o roxo, de uma forma ou de outra, estava presente em todas as indumentárias do grupo. Um potente sistema de som emitia música em alto volume. O ucraniano reconheceu o ritmo do rap mas não entendia as palavras:
“ No matter yo colour or creed,
   Im going to make ya bleed,
   Packing my AK
   I wanna see you die , today.â€

Vassili sentia-se mal, cada vez pior . Quis voltar para dentro e rodou sobre os calcanhares. Ao completar os cento e oitenta graus deparou-se com um indivíduo de feições semelhantes às suas no que diz respeito à origem geográfica. O “boa noite “ em ucraniano iniciou um breve dialogo onde foi relatada a pobre condição clínica. O seu compatriota ao ser informado da falta de cartão encolheu os ombros e proferiu uma obscenidade eslava. Pousou a mão no ombro do servente exausto e explicou:
- Camarada, se queres ver médico faz o que eu dizer. Estás a ver aquele negro alto, ali junto ao carro com luz roxa ?
- Da – anuiu Vassili
- Vai lá e diz em Português , Preto do caralho .
- ch`to ?– não entendera
- Diz ao homem . Pre-to do Ca-ra-lho
Vassili repetiu em surdina ,várias vezes : Pre...to da Cara-lhu, Prieto do Caralho.
Caminhou em passo firme em direcção ao negro mais alto , que parecia liderar o grupo , parou a dois metros de distância e disse
- Boa noite.
Imediatamente vinte e quatro olhos de marfim congestionados em pequenos rios de sangue rodopiaram em sua direcção. Três mãos entraram no lado esquerdo dos casacos, outra mão movimentou-se para o cós das calças.
- O que é que tu quer , pula ? Emigra ! – Foi disparado por uma voz violenta e rude. A frase foi acompanhada por um baixar de um braço com três dedos estendidos.
- Boa Noite . Pre..to do Caralhu!
A mão do gigante negro ,em menos de um instante ,empunhou uma Glock, recentemente roubada na Azinhaga dos Besouros a um agente da PSP , e proferiu dois disparos.
Os carros partiram deixando atrás de si o cheiro da borracha e a batida “Gansgta†de Dr.Dre. Correram maqueiros, o corpo estendido no chão foi rapidamente transportado para o interior.
Quando Vassili recuperou, por momentos,  a consciência percebeu, pelas luzes no tecto que passavam rápidas a seus olhos e pela  pressa com que empurravam a maca, que estava no hospital e que estava,  realmente ,  muito doente.
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Marco Pinto Correia

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Dionísio Dinis
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« Responder #1 em: Maio 26, 2008, 22:49:11 »

Permita-me amigo Marco, permita-me que repute este naco de prosa, como um momento de excelente escrita.Sem favor algum, um dos melhores textos deste site.Ao prelo!
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Mel de Carvalho
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« Responder #2 em: Maio 27, 2008, 14:19:07 »

Caríssimo Marco,
confesso que nunca deixo de me surpreender ao lê-lo. Seja qual for a temática, a sua escrita é marcante, contudente e assaz verídica.
Dê-nos o prazer de o continuar a ler, sempre. Um dia em livro e que seja breve!

Fraterno abraço
Mel
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Mel de Carvalho
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anamarques
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« Responder #3 em: Maio 27, 2008, 15:23:33 »

De todos os teus textos magníficos este é um dos meus preferidos, Marco. Gosto muito deste Vassili. Um beijo.
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Goreti Dias
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« Responder #4 em: Maio 27, 2008, 22:12:48 »

Uma solução inesperada!
Um óptimo texto!
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Goretidias

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britoribeiro
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« Responder #5 em: Maio 28, 2008, 15:58:26 »

Raio de maneira para entrar no hospital. Muito realista, gostei!

Abraço
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damasco
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Frase é uma palavra. Palavra não é uma frase.


« Responder #6 em: Junho 04, 2008, 11:43:51 »

Cru e nú. Muito bem.
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Hoje, o Figas veio aqui, desejar a todos um bem-estar na vida, da melhor maneira vivida.FigasAbraço
Novembro 30, 2023, 09:31:54
Bom dia. Para todos um FigasAbraço
Agosto 14, 2023, 16:53:06
Sejam bem vindos às escritas!
Agosto 14, 2023, 16:52:48
Boa tarde!
Janeiro 01, 2023, 20:15:54
Bom Ano! Obrigada pela companhia!
Dezembro 30, 2022, 19:42:00
Entrei para desejar um novo ano carregado de inflação de coisas boas para todos
Novembro 10, 2022, 20:31:07
Partilhar é bom! Partilhem leituras, comentários e amizades. Faz bem à alma.
Novembro 10, 2022, 20:30:23
E, se não for pedir muito, deixem um incentivo aos autores!
Novembro 10, 2022, 20:29:22
Boas leituras!
Novembro 10, 2022, 20:29:08
Boa noite!
Setembro 05, 2022, 13:39:27
Brevemente, novidades por aqui!
Setembro 05, 2022, 13:38:48
Boa tarde
Outubro 14, 2021, 00:43:39
Obrigado, Administração, por avisar!
Setembro 14, 2021, 10:50:24
Bom dia. O site vai migrar para outra plataforma no dia 23 deste mês de setembro. Aconselha-se as pessoas a fazerem cópias de algum material que não tenham guardado em meios pessoais. Não está previsto perder-se nada, mas poderá acontecer. Obrigada.

Maio 10, 2021, 20:44:46
Boa noite feliz para todos
Maio 07, 2021, 15:30:47
Olá! Boas leituras e boas escritas!
Abril 12, 2021, 19:05:45
Boa noite a todos.
Abril 04, 2021, 17:43:19
Bom domingo para todos.
Março 29, 2021, 18:06:30
Boa semana para todos.
Março 27, 2021, 16:58:55
Boa tarde a todos.
Março 25, 2021, 20:24:17
Boia noite para todos.
Março 22, 2021, 20:50:10
Boa noite feliz para todos.
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Boa tarde a todos.
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Olá para todos!
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Boa feliz noite para todos.
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Bom fim de semana para todos
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Boa quinta para todos.
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Boa noite para todos.
Março 02, 2021, 20:10:50
Boa noite feliz para todos.
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