damasco
Membro da Casa
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Frase é uma palavra. Palavra não é uma frase.
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« em: Agosto 13, 2008, 01:52:10 » |
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Em cima da lareira, uma fotografia. A famÃlia compareceu em peso ao casamento tardio da tia. Ele também lá estava pela mão da avó, olhar de tresloucada, fatinho indesejado nas traseiras da igreja, cenário escolhido para servir de tela à fotografia. Branco espesso, rugoso, calor assassino a roubar oxigénio a pulmões habituados à frescura. A tia sorridente, já cabelos brancos a esfarripar-se no modelar penteado, tantas horas o cabeleireiro Gabriel a alinhá-lo, ela teimosa, na recusa de uma outra cor que não a do tempo decorrido, o marido, aquele homem de mãos gigantes, logo ao lado a traçar-lhe a cintura; sente-se empenho naquilo que faz, desfaz-se em suor, mas o ar, o olhar e a postura bem podiam ser de um profissional da fotografia. Antigo futebolista, rezam as crónicas da época, e umas poucas linhas no jornal local que o lançaram para o estrelato onde julgou estar a vida inteira. De má fama, sabia-se. Mulherengo, invejoso, mentiroso. Adão andava na boca do povo. A famÃlia compareceu em peso à quele casamento, certamente para ver com os próprios olhos que aquilo iria mesmo suceder, para confirmar que tudo não passava de uma piada de mau gosto qualquer. Eva, a tia. Sorridente. Nunca solitária, tantas vezes e por todos acarinhada. Infelizmente, a nascitura não lhe foi generosa na beleza. Espantosamente, Eva reclamava-se de uma tardia barriga grande; tardia para os seus quarenta anos. O Sr. Caim deu um passo atrás e olhou bem nos olhos de Eva. Ainda uns dias atrás os tinha visto sem vida, muito abertos, dentro da água do bidé. Estavam bem vivos. Seria da felicidade? Agarrado a ela, Adão. Deveria chamar-lhe pai? O Sr. Caim nunca o tinha feito em vida. Aliás, sempre que ele estava por perto, fugia para o fundo do quintal, emaranhava-se nas videiras trepadeiras, ficava por lá, enquanto toda a gente o procurava sem convicção. Sempre que se lembra dele, e agora foi lá buscar as memórias profundas, é medo que sente. Sua mãe não está na fotografia de casamento porque tinha muita coisa para fazer e não estava com disposição para festas. Três anos antes do disparo daquela fotografia, gemia ao fundo do quintal amparada pelas mãos gigantes de Adão. Toda a gente sabia dos eventos que se cruzavam naquele casamento, das emoções contraditórias expressas no ar incrédulo dos convidados. Adão tinha feito o filho a uma das irmãs e agora casava com a outra, que, por sua vez, já estava de esperanças. É provável que tenha sido o disparo daquela fotografia que acendeu o rastilho que fez explodir toda a famÃlia em ódios, facções, mesquinhez, arrogância, invejas. Mas o sorriso honesto de Eva não enganava. Era um sorriso genuÃno, aberto e amplo, quente como aquele dia retratado contra a parede espessa e rugosa, o único sorriso que veio a perdurar depois de muitos anos. E aquela barriga. O Sr. Caim bem sabia que tinha um irmão, aliás, toda a vida o soube, mas foi-lhe tanto o ódio incutido que nunca quis saber disso. Ainda hoje, a memória era demasiadamente pesada e odiosa.
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