O lobo branco

Era uma vez um lobo branco de espectacular beleza. O seu pêlo luzidio concorria em esplendor com o manto de neve branca que cobria os montes onde habitava. Chefe de uma alcateia, por todos era respeitado e amado. Da sua loba preferida, uma jovem ágil na caçada, atenciosa e zelosa com as crias, tivera uma descendência já numerosa. Com os pais e nesta alcateia apenas viviam uma lobazinha franzina e um jovenzinho lobo, já desembaraçado.
Naquele Inverno o frio fazia-se sentir de forma rigorosa. O alimento escasseava, era difícil encontrá-lo sob o manto gelado de neve. Poucos animais se arriscavam a sair das suas tocas. Só a fome em extremo era capaz de os obrigar a abandonar a segurança das suas casas. Os predadores andavam absolutamente esfomeados, descontrolados… Tudo servia para comer. Um pequeno rato, um coelho mais desprevenido… De uma serra tinham que passar a outra e depois a mais outra, numa busca permanente de alimento que lhes assegurasse a sobrevivência.
Numa noite fria, muito fria, o jovem chefe conduziu a alcateia até próximo da aldeia. Em condições normais não se aventurariam, mas a fome era mais forte que a cautela e o medo.
As ovelhas dormiam nos seus currais, os galinheiros guardavam gordas galinhas. As raposas já tinham sentido o apelo do suave perfume das suas carnes apetitosas. Também algumas sentiram o aguilhão dos chumbos de caçadeira nos seus flancos. Depois de duas terem ficado estendidas, mortas, à entrada da quinta, tinham desistido de lá tornar.
- Ah! Não seremos nós a largar lá o pêlo desta vez! Amigos, vamos ver o que se pode tentar no curral da quinta ao fim da aldeia!
Foram rodeando a aldeia…
Eis quando:
- Mas… o que vem a ser isto? – questionou o jovem chefe.
Aproximou-se para ver melhor. Atrás de si a matilha espreitava . Teriam ali ceia para os filhotes, pelo menos? O corpo caído prometia alguma quantidade de comida.
O lobo branco aproximou-se e verificou que era um jovem rapaz vestido com roupas próprias para desporto na neve. Os seus esquis estavam caídos mais além. Pelos sulcos traçados na neve, via-se que tentara arrastar-se em direcção à aldeia, sem êxito. Jazia, agora, inanimado, o rosto meio enterrado na neve.
O lobo aproximou-se e verificou que ainda respirava. Dirigiu-se à alcateia:
- Amigos, lobos não comem humanos nem os atacam, a não ser em casos extremos. Tão pouco nos aproximamos das aldeias. Esta é uma situação complicada, por isso estamos aqui, mas não vamos devorar o jovem.
- Que fazemos? Continuamos o nosso caminho? – perguntou o seu jovem filho.
- Não, meu filho! Vamos tentar ajudá-lo.
- Como? – espantou-se o jovem.
- Vou tentar reanimá-lo! Afirmou, convicto, o lobo branco.
Aproximou-se do rapaz e escavou a neve ao pé da sua cara libertando-a do sufoco em que parecia querer entrar a qualquer momento. De seguida, com os seus dentes fortes, fê-lo tombar até ficar de costas. Roçou as faces do rapaz com a sua língua áspera tentando que o seu calor e a fricção o fizessem despertar do desmaio em que caíra. Eis que o seu ouvido apurado detecta um ruído quase imperceptível. Volta-se e depara-se com um homem robusto armado de caçadeira pronta a disparar.
- Fujam! – uiva o jovem chefe para os membros da sua alcateia.
O perigo espreita pelo cano da espingarda. De um salto o lobo atira-se para o lado e foge ladeira acima. No pico do monte uiva de forma lancinante, como se quisesse explicar àquele homem o que tentava fazer, quando a morte o ia apanhando de surpresa. Ainda sentia o cheiro a pólvora no ar.
Entretanto, o jovem rapaz caído na neve bebia chá quente de um cantil que lhe oferecia o homem armado. Já reanimado:
- Obrigado. Tenho uma perna partida. Devo ter desmaiado com as dores. Lembro-me de ter tropeçado numa rocha meia tapada pela neve e de tentar encaminhar-me para a aldeia…
- Foi uma sorte ter-te encontrado – retorquiu o homem – senão, por esta hora, estavas aos pedaços no estômago de uns lobos esfaimados. Um já tinha começado a provar o sabor da pele do teu rosto. Foi sorte! Vem, que eu vou levar-te até à aldeia.
- Espere! O lobo que aqui estava não pretendia devorar-me. Lambia-me a cara quando eu despertei. Fiquei assustado quando vi aqueles olhos tão brilhantes , tão perto dos meus. Mas ele continuou a lamber-me para me reanimar. Devo-lhe a vida – afirmou o rapaz.
- Tu estás a delirar! Vem daí!
O homem agarrou o rapaz e levantou-o. Traçou o seu braço na cintura do jovem e lá o foi carregando lentamente. O jovem voltou a cabeça na direcção do monte e viu o belo lobo recortado, branco, na sombra da noite. Imitou um uivo, um pouco fraco, é certo, mas que o lobo branco captou. E um uivo nítido, forte, ecoou no silêncio da noite. O agradecimento fora recebido.
Um arrepio de emoção percorreu o corpo do homem. Por pouco não matara um ser com qualidades que muito desejaríamos encontrar nos homens.
Duas lágrimas de arrependimento caíram sobre as faces doridas, mas o frio as fez gelar.