[Parte I aqui][Parte II aqui]Já se tinham passado uma certa quantidade de horas desde o último som que o José ouviu, o tal pa de palhaço que a porca da chefe lhe dirigia, e desde essa altura até agora, que estava já confortavelmente instalado em sua casa, enroscado no corpo da mulher, ainda não se tinha apercebido da gravidade da situação. Gravidade é um termo meu, veremos que talvez para o José este acontecimento não traduza nada de grave, antes um desejo quase inato de paz e sossego, mas adianto-me demais no relato, a verdade é que nesta altura o José teve finalmente o ataque de pânico que qualquer pessoa normal já teria tido desde o primeiro segundo em que repentinamente deixasse de ouvir. Meu Deus, estou surdo, não consigo ouvir a voz da minha mulher, não consigo ouvir a quinta de Beethoven, não consigo ouvir o telefone a tocar, o despertador a despertar, o computador a computar, não consigo ouvir nada, nem sequer as palavras com que formo este pensamento. Será permanente, será que nunca mais na minha vida vou voltar a ouvir o doce som da voz da minha querida mulher, será que não vou conseguir ouvir o meu primeiro filho que está por vir a chorar pela primeira vez, a dizer papá pela primeira vez, será que vou morrer sem tornar a ter de ouvir os barulhos da multidão, os gritos roucos dos jogos de futebol, os guinchos da porca, a minha mulher a discutir comigo, o meu pai a dizer que sou um falhado, os carros a apitar no trânsito, o barulho dos tiros e das guerras, será que vou viver o resto da minha vida com o privilégio de não ouvir o mundo, nestas e noutras coisas pensava o José que começou por se sentir fisicamente atacado por uma doença qualquer mas que lentamente, como se pode depreender destes pensamentos não formulados em linguagem de gente, traduzidos nesta folha de papel por mim sabe-se lá através de que artes mágicas, se vai apercebendo das vantagens que uma vida sem ouvidos pode trazer.
Não foi, é claro, uma transição tão rápida como eu aqui a descrevi, entre o pânico e a felicidade passaram-se, digamos em números redondos, uma boa dúzia de minutos, mas em que nada de interessante se passou na cabeça do surdo de que estamos aqui a falar, nada que não fosse a repetição das mesmas lamentações, que já aqui transcrevi, de não poder voltar a ouvir a voz da mulher que o encantava e de não ouvir a música clássica que o distraÃa e de não ouvir a voz do filho, ou filha, que estará por nascer. Lentamente, a palavra distrair foi tomando forma na mente do José e foi a chave para a transição entre o pânico e a felicidade. Foi-se apercebendo aos poucos que nunca mais teria de ouvir os barulhos que o distraÃam dos seus pensamentos, porque ele era um homem que gostava de pensar, a seguir o seu coração enquanto jovem e teria estudado filosofia ou qualquer outra destas ciências que envolvem pensamentos abstractos que não servem para resolver problemas concretos da humanidade, aos pensamentos abstractos com vista a resolver problemas especÃficos chamamos nós, como se sabe, engenharia, que nunca foi interesse deste surdo. Cuidado também aqui na expressão seguir o coração, esse orgão que do ponto de vista médico apenas bombeia sangue para o restante corpo não é aqui apontado no sentido literal, ou estaria o José a passar a vida a apertar aurÃculas e ventrÃculos e a abrir e fechar valvas sanguÃneas quando o que ele queria mesmo é pensar. Por isso quando aqui falo em seguir o coração digo no mesmo sentido em que um historiador se forma em história porque gosta de estudar vidas mortas, como se fosse útil a uma vida ocupar-se de mortos que já viveram o que tiveram a viver, mas enfim, conhecendo o passado evitam-se repetir os erros no futuro, portanto seguir o coração é fazer aquilo que se julga querer fazer. Está visto que o José não o fez e está visto que queria tê-lo feito. Porque não o fez e porque o queria fazer são já contas de outro conto. Mas divago.
O que o José acabou por se aperceber, naquela tal dúzia de minutos, foi que todos os barulhos mundanos contribuÃam para a dispersão da mente e eram a razão pela qual ele já não se lembrava de reflectir sobre o sentido da vida ou sobre o que é o amor. Mais ainda, o José apercebeu-se de que mesmo o ruÃdo interior contribui para isso, o tal barulho de pensamento que incomoda o raciocÃnio filosófico e atrasa a compreensão de temas de outra forma compreensÃveis. Apercebeu-se também que essa foi a razão pela qual o tal ataque de pânico que há muito era devido tardou a acontecer, e se aconteceu foi porque ainda não tinha perdido o hábito de ouvir as coisas do mundo e nesse momento cedeu à pressão do ruÃdo que ele não conseguia ouvir. Tudo isto enquanto continuava sentado ao lado da mulher que, calada, não fazia um som que fosse audÃvel, quer para o marido, que como sabemos está incapaz de ouvir o que quer que seja e contente por isso, quer para qualquer um de nós, como eu e o caro leitor, que secretamente estivesse a espreitar aquela sala. Estava uma casa silenciosa e um homem feliz por estar de ouvidos fechados a todo o som. Todo o som que, como o José acaba brilhantemente de compreender muito mais rapidamente do que nós pelo facto de não estar atrasado pelo valor da linguagem no pensamento, é ruÃdo e, todo o ruÃdo distracção.
E ele viu-se livre disso tudo. Feliz dele que pode agora pensar em paz.
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E ainda continua...