britoribeiro
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« em: Outubro 23, 2007, 21:07:31 » |
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A gamela encostou suavemente à areia, no portinho. Os homens saltaram para terra descalços, calças arregaçadas, chapinhando no silencio da noite. Sem precisar de voz de comando, todos se esforçaram por guindar o barco para local seguro, onde o mar não lhe tocasse. Os rolos, em cima dos varais, deslizavam sob o fundo chato daquela embarcação de origem galega, mas bem adaptada à s rudes condições do portinho de Gontinhães. Os bancos, ainda há pouco ocupados pelos homens que remavam, estavam agora vazios. A vela estava arrumada, não havia vento, tinham ido e vindo a remos. As redes da lagosta tinham sido largadas perto, a sudoeste do Forte do Cão, já nos mares de Afife. Cada um pegou nas suas coisas, nos seus baús e murmurando um “até amanhãâ€, rumou à s suas casas, depois de calçar os socos em terra firme. Já passava da meia-noite, a luz eléctrica que alumiava as ruas, tinha sido apagada. Valia a lua, que ia alta, faltavam três dias para ficar cheia, sempre dava para ver o caminho.
O Manuel Verde, o Jeitoso, arrais da embarcação, enrolou o cigarro às escuras, sem hesitações, pela prática de muitas noites, acendeu-o no aconchego da samarra, tirou um longa fumaça e observou os seus camaradas que pesadamente se afastavam. Urinou à beira de uma pilha de caixas, que esperavam o verão e a sardinha, que tanta fartura trazia à terra. Após uma última fumaça, atirou a beata para a areia, e inclinou-se para dentro do barco, junto ao testeiro da popa, para pegar no seu baú. Era um velho e gasto baú de madeira, que usava há mais de vinte anos, cada dia que ia para o mar. Tinha sido a sua mãe, que Deus tenha, que o tinha encomendado a um marceneiro da freguesia quando, ainda solteiro, tinha começado a governar aquele barco. No baú levava o comer, uma garrafa de vinho e uma garrafinha de aguardente, na qual raramente tocava. Umas das ultimas vezes que tinha sido aberta, foi para socorrer o tio Corisco, quando uma maregada batera de través na gamela e o velho pescador ficara encharcado até aos ossos, pelas águas geladas, daquele mês de Novembro. A aguardente tinha sido uma bênção dos céus e tinham devolvido as cores e o ânimo àquele homem, que vestira roupa seca, prontamente emprestada pelo arrais e pelos seus camaradas, o Damião e o Tio Mala. Dentro do baú, repousavam a agulha de marear, a sonda, os papéis do barco e uma lista dos pontos de alguns pesqueiros mais complicados, cuidadosamente embrulhados num pedaço de lona, para defesa contra a salitre e a humidade. A um canto estava uma pequena imagem da Senhora de Fátima, aquela que tinha aparecido aos pastorinhos e que invocava sempre que saia para o mar.
Ergueu o baú, pousou-o sobre a cabeça, não pesava muito, de qualquer forma a casa não era longe. Ficava no fim da Avenida, que tinha sido construÃda há poucos anos e que lhe dava muito jeito. Agora já não tinha de caminhar sobre as dunas de areia, nem sobre as lajes, que apareciam aqui e ali. Pouco depois, chegou à entrada do corredor, que dava acesso à casa térrea, que fora do seu pai. Na casa ao lado vivia a irmã, a Piedade e a entrada era comum à s duas casas. Por isso, ao longo do corredor, tinham amontoado lenha para os fogões, do lado norte do Manuel, do sul, era da Piedade, deixando uma estreita passagem ao meio. O Manuel Verde abriu a cancela, deu um passo para dentro, sentiu um tropel aproximando-se e algo o forçou entre pernas. O pânico invadiu este curtido homem do mar, que deu um berro de terror. O baú voou sobre os feixes de lenha empilhada, caindo com fragor, uns metros adiante. Completamente atordoado, com o coração ao pé da boca, ainda viu o vulto do grande cão que fugia, também ele espavorido, pela cancela aberta. Da sua casa, surgiu a luz bruxuleante de um candeeiro a petróleo, que a Joaquina, sua mulher segurava, enquanto apertava o xaile com a outra mão. - És tu, Manel? Que foi isso, homem de Deus? - Ah...Ah...Foi...foi um cão, foi um cão que me passou pelo meio das pernas... - Cruzes diabo, que fazia um cão aqui dentro? - Sei lá, deve ter entrado para o terreno e como fechaste a cancela, ficou cá dentro preso. Quando me viu a entrar, o bicho aproveitou para fugir. Raios o partam, que me pregou um susto de morte. E o pior, é que o baú caiu e está tudo espalhado. - Deixa lá homem, vai para dentro e come uma malga de caldo, que a panela está no fogão, enquanto eu apanho as tuas coisas. Vá, vai-te aquecer, que deves estar gelado.
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