marcopintoc
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« em: Janeiro 06, 2009, 00:24:40 » |
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O valete bateu o sete de espadas no mesmo instante em que o sistema de som do aeroporto anunciava que mais um voo para um lugar que não era o meu se encontrava atrasado. Nos aeroportos todos estamos sós. Por vezes aparentamos não o estar mas, na mais pura verdade que o “duty free†não consegue esmorecer, dentro dos mamÃferos terrestres prestes a entrar no tubo de aço alado perpassam negros e breves momentos cinematográficos de bolas de fogo ;homens de turbante que nos querem levar a arder contra as torres. Nos passageiros há sempre uma réstia de medo que alegremente converterão em milhas aéreas se a jornada chegar a um destino que não seja a combustão em querosene. Olho entre o fumo a cheirar a “ground zero†do meu café com leite e vejo que há outro tipo de fogo nos homens que jogam à s cartas. O néon anuncia que há dezassete mil maneiras de fazer. Gosto do meu assim. Está quente, arde. Ardem também os olhos dos jogadores, há um ódio amenizado em grandes canecas de cerveja que, em conjunção com as camisas floridas que alumiarão o negro breu do inverno berlinense, revela a nacionalidade dos homens .Meia-idade, obesos, pele feita carmim lagosta no sol que não existe em sua pátria. Lisboa é a sua ponte, o seu primeiro passo no regresso a casa. Há álcool mas também há algo mais que os lança naquele conflito de olhos raiados de jet lag e hipertensão ascendente. Está sentada ao topo da mesa. O lábio inferior descai-me e toca a borda quente a chávena. Se fosse estivador urraria “Que boa†, Se realizador porno acabava de encontrar a diva que me levaria ao estrelato. Todos os olhos que circulam pelo terminal terminam sobre ela . Quero-lhe chamar Mulata porque não há nome mais digno ao tom de café aleitado que a cobre. É por ela que os homem jogam , é por ela que se os naipes virassem laminas se trespassariam em batalha. Os olhos dela encontram os meus. Carvão negro infernal onde tudo o que é libidinoso ganha a forma de um convite explÃcito. Por ela também matava. Ela seria a minha “Jihad†, ela seria a minha invasão de casa de outros. O negro dos seus olhos é de um ouro ainda mais precioso que o petróleo. Ela nota que a observo. Os homens também. Um deles , o que enverga um boné publicitário de uma Schnapps qualquer , resfolga-me um olhar azul acompanhado por um bafo que soa à marcha lenta de uma “Wehrmacht†em passo de retirada da batalha. Ele é pálido, eu sou do sul. Algures na longa linha da História uma antepassada minha gritou de prazer perante as artes do amante árabe e deixou dentro da minha estripe memórias de cavalos rápidos a correr sobre as areias do deserto. O olhar dele já não tem a força de outrora. O meu , talvez por ter mais medo da fome , talvez por ser mais pobre , é diferente. Mais sereno , homem das margens do mediterrâneo para quem essas coisas da cor e da raça são sÃlabas vagas de tristes gentes que não navegaram o mundo. Ele retira o olhar . Eu não . Ela também não. Levanta-se . Abençoada é a única palavra que me ocorre ao vislumbrar a profunda sensualidade do seu caminhar , pernas longas , sapatos plataforma , umbigo liso a dizer que o melhor está mais em baixo. Vem. A camisola de alças vermelha é óbvia na sua singularidade como cobertura do torso. Mil olhos de corno agitam nervosamente os trolleys carregados de inveja quando ela se senta junto a mim. O meu braço treme, os meus joelhos e algo mais também se agitam perante aqueles lábios carnudos que se afastam e perguntam: - Gosta de jogo de cartas ? – O sotaque apenas confirma o que a mitologia de Copacabana me fazia suspeitar desde o primeiro relance da sua beleza -.Apenas consigo abanar a cabeça em negação: - É, eu também não – roda o pescoço em direcção aos homens que aceleraram o ritmo dos punhos fortes a embater na mesa. Pressinto que o impacto é uma mensagem subliminar a recordar do que é feito o meu rosto. Ela , Mulata , putinha sabida ,levanta o braço e dá um “alôâ€. Eles estancam o jogo e enrugam alguma preocupação. Ela mente no idioma poliglota dos malandros: - Ué ? É meu familiar – duas mãos de dedos longos, mãos de mulher boa de cama , afunilam-se em redor dos lábios que certamente carregam igual saber – My family . Cousin. Primo. É ! Volta a sua atenção a mim. Algures nas minhas costas , talvez duas mesas atrás ,alguém resmunga “ Primo , o caraçasâ€. Os dois das cartas parecem ter aceitado a desculpa esfarrapada e retornam ao baralho. Há algo no meu olhar que pergunta o que faz ela em tão insólita companhia, a questão é entendida: - Eles me compraram – o rosto tão belo adquiriu, subitamente, uma expressão de negócio de carnes , do calor tropical da sua boca vem a brisa gelada da vida dura, da vida de merda a que urge fugir. Os olhos , carvão esmorecido , o lado menos erótico do Rio de Janeiro tomou conta dela e as belezas que tanto admirei nada mais são agora que moeda de troca por uma vida melhor .â€Não vou passar a vida a fazer boquetes para comer†é mensagem que me diz sem proferir palavra. Esboço pateticamente um , “mas você não é mercadoria “ que ela imediatamente contesta. - Sou sim . Sou puta , muito puta como todo o mundo – enfurece-se ligeiramente – você faz o que ? . Respondo com o cinzentismo do meu meio-termo na cadeia alimentar da grande corporação. Refiro as finanças, ela pega na deixa : - Você é bom de números, eu sou boa de cama – aponta um braço algo irado na direcção dos jogadores – Está vendo aqueles ali? Sou quarenta mil dólares para eles e sabe porque ? – Aceno que não , atónito , confrontado naquela frieza que matou o tropicalismo com a realidade da economia de sobrevivência . Ela prossegue a sua explicação, o seu rosto aproximou-se do meu , tem desenhado as curvas de crispação de quem está puto, no caso puta , da vida de forma intensa – Porque faço tudo, levei os babacas a lugares que eles nunca imaginaram , afoguei o pinto deles em tanta safadeza que eles já não conseguem viver sem mim . Você julgou o que com seu olhar de coitadinho? Que eu era a pobrezinha brasileira que tinha sido enganada pelo tarado alemão? Sai dessa rapaz , aqui é business- revira a cabeça. Ela clarifica ainda mais o porque daqueles dois homens prosseguirem tão afincadamente o jogo enquanto a sua presa confraterniza com um estranho: - Mil jogos . Eles jogarão mil jogos e quem ganhar se casará comigo. Serei só sua , sua esposa , sua criadinha , sua puta do céu . Até lá serei uma noite de um outra noite de outro. Se quiserem que fiquemos todos juntos , tudo bem . Se quiserem trazer mais alguém, por mim tudo bem. Mas quando terminar vou virar a senhora que Deus julgava que nunca iria ser. Lanço os olhos por cima de bela cabeleira encaracolada e analiso com maior vagar os jogadores. O apogeu dos seus melhores dias há muito que se foi , as gorduras transgénicas abatem-se sobre toda a linha de cintura em grossas fatias de carne flácida. Entre o queixo e o pescoço as papadas trepidam com o passar de uma respiração cada vez mais difÃcil. Em declÃnio, homens que sabem que só com dinheiro podem ter uma mulher assim . O motivo para a sua competição talvez não consiga entender. O preço dela sim. Esse entendo. E digo com a sinceridade que apenas os estranhos , os bêbados e os loucos parecem ter como sua: - Se tivesse cinquenta mil dizia para os largares e irmos embora para um lugar qualquer. Ela ri-se . A minha falta de pudor e a minha frontalidade divertem-na. Encena a pantomina da mulher ofendida enquanto larga uma sonora gargalhada que revira algumas cabeças. Depois cala-se. O fogo de Vulcano voltou ao seu mirar. É exactamente isso que faz. Mira-me do final da minha calvÃcie inicial até a linha do meu estômago ,a iniciar o seu crescimento de primavera da meia-idade, que se encontra colada à mesa. Por debaixo do tampo o bater do meu coração ansioso dela replica as batidas em sÃtios menos comuns. Então ela pergunta - E quanto dinheiro tem você aÃ? Tenho cem euros. Digo-lhe. Ela contempla o painel das partidas como se no meio da informação dos voos procurasse um sentido para a minha ninharia. Demora uns segundos. Levanta-se e, antes de caminhar como uma imperatriz de todas as putas em direcção aos lavabos, informa : - Isso são sete minutos de mim. Você vem? E parte. Os meus joelhos tremem quando ela escancara com um à -vontade de malandra da vida o acesso à casa de banho dos deficientes. Roda a cabeça em minha direcção, um dedo onde os anéis pagos pelos dois das cartas brilham como isco do meu cio chama o meu desejo. Porém em seguida tranca-se no interior, por um breve segundo penso se não estaria a ser objecto de alguma brincadeira de mau gosto. Se a meretriz não estará a gozar com a minha cara , se não serei uma gozação de um voo atrasado e do seu tédio.Não o está. Segundos depois o tacão de um sapato plataforma empurra a madeira da porta e revela a figura inclinada. As mãos firmes nos ferros que servem para auxiliar paraplégicos a regressarem à sua motricidade sentada, o tronco inclinado para a frente. Abaixo da cintura nada resta senão a inclinação divina que os sapatos proporcionam e que me quer em si. As curvas são dedilhadas em trovas de mil baladas. O trejeito das ancas aprendido em bailes funk ginga por um breve segundo, apela , o tempo escasseia. A firmeza das carnes tem as palavras de mil sambas. Levanto-me, na mão de palma suada aperto as duas notas de cinquenta euros .Encurto caminho e passo uma tangente à mesa dos jogadores. A deslocação do ar ou uma piada do deus dos tarados faz com que uma carta voe e tombe mesmo à minha frente. O Joker, o curinga ri-se para mim e eu devolvo o sorriso. Com vigor piso a face pintada e aligeiro o passo.
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