Vóny Ferreira
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« em: Janeiro 13, 2009, 18:55:28 » |
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A minha cadela “ COIMBRA†Era uma cadela pequenina, rafeira, como tantas outras. No dia em que o meu pai a trouxe para casa fiquei tão contente que passei a noite em claro. Já esperava que me dessem um cão há muito tempo e quando menos previa lá veio ela… como uma rabanada de vento que nos entra pela casa dentro de uma forma inesperada. Entrou dentro de casa abanar o rabo de contentamento, pequenina, dócil, desamparada como são todos os cães quando são arrancados ao leito das mães. Nesse primeiro dia correu em direcção a mim a abanar o rabito e eu louca de felicidade dei um gritinho histérico e apaixonado. Adoptou-me de imediato ao vir na minha direcção. Saberia ela, por instinto, que era eu que a desejava como ninguém? Curiosamente… outras pessoas a aguardavam nesse dia, principalmente a minha mãe com uma cara desgostosa, porque sabia que a partir desse momento, passava a ter como acréscimo à s suas tarefas diárias, a limpeza do cocó da cadela. Eu nesse dia prometi mundos e fundos à minha mãe. Jurei que seria sempre eu a limpar toda a sujidade que a cadela fizesse, como qualquer criança radiante. Nem sempre cumpri essas promessas categóricas, mas isso é outra conversa… Nessa noite, a cadelinha deu gritos alucinantes durante largo tempo, chamando pela mãe. Levantei-me algumas vezes tentando tranquilizá-la como se faz à s crianças perdidas. Quando voltava para a cama punha-me a chorar em silêncio ao imaginar como seria se alguém me arrancasse da minha mãe por melhor que fosse o motivo. Desolada compreendi melhor a tristeza da minha cadela, mas como em tudo na vida o egoÃsmo de a ter perto de mim, era mais forte do que a consciência plena daquele seu sofrimento. No meio da minha terrÃvel insónia, engendrei um grande plano: Eu e a minha cadela serÃamos mais inseparáveis do que os irmãos siameses. SerÃamos grandes amigas, como o são a água e as flores. Como são os rios, os mares e os peixes. Nunca mais a faria chorar… No dia seguinte coube-me a tarefa de lhe escolher um nome. Ficou baptizada pela Coimbra. Nessa altura eu vivia em Angola há pouquÃssimo tempo. As saudades de Coimbra eram motivo de nocturnas choradeiras. Chorava muito… tal como a minha pobre cadelinha arrancada agora do calor da sua mãe. Achei que aquela cadela preta de pêlo alongado, de olhos amarelos e dóceis, tinha uma semelhança qualquer com a minha saudosa Coimbra. Eu tinha na altura 10 anos, vivia rodeada de sonhos e fantasias, criava-os na minha cabeça como quem faz desenhos abstractos inimagináveis. Sempre fui bastante sonhadora, introvertida, por isso os meus pensamentos à s vezes profundos, outras, zangados, eram os meus amigos predilectos já que as pessoas na sua grande maioria me assustavam. Eu e a minha cadela Coimbra fomos de facto sempre amigas. Um dia foi atropelada por uma Vespa ziguezagueante conduzida pelo meu pai, que no breu da noite não a viu. E eu, louca de tristeza, pus-me a sarar-lhe as feridas com mercurocromo a rodos, panos velhos envoltos na sua pata ferida. Foram dias e dias de sofrimento. Eu a tentar curá-la como quem trata do sua menina, ela a olhar-me com os seus olhos amarelos, como quem se queixa em silêncio de uma patifaria de um adulto um pouco distraÃdo. Sempre que ela me via chegar a casa abanava o seu rabito alongado e olhava-me através dos seus belos olhos amarelos como se me falasse em silêncio. Ela sabia muitÃssimo bem quando me sentia triste. Nessas alturas, enquanto eu me deitava vestida por cima da cama a olhar para o tecto do quarto como quem busca explicações, inexplicáveis… ela deitava-se ao meu lado no tapete do quarto e tristemente ia soltando aqui e ali um latir ameno como se quisesse chorar comigo. A minha cadela Coimbra era um animal especial… Um dia rompeu repentinamente a guerra civil em Angola. Deu-se então a descolonização, o medo e a insegurança instalou-se nas pessoas e de repente nos muros de meu quintal tropas da UNITA entrincheiram-se para responderem ao fogo cruzado do MPLA. Os meus pais como milhares e milhares de Portugueses resolveram abandonar Angola para sempre e regressar a Portugal. Quinze dias antes de embarcarmos para Lisboa, a minha cadela Coimbra sem nenhuma razão aparente resolveu despedir-se de nós. Deixou de comer. Deixou de responder aos meus carinhos. Já não me olhava com os seus lindos olhos amarelos como sempre fizera quando eu falava com ela. Deixou de me abanar o rabo como fizera naquele primeiro dia em que chegou, em que irrompeu naquela casa, como uma flecha descomandada. Não compreendi de imediato a sua súbita tristeza e alheamento. Em momento algum me pareceu doente e por isso mesmo não dei grande importância ao assunto. De repente, quando faltavam precisamente três dias para embarcarmos para Luanda para virmos embora definitivamente para Portugal, ela morreu. Sem se despedir de mim, sua companheira de sempre. Assim… como quem foge no remoinho de um vento tropical. Logo de manhã quando me levantei, fui dar com ela morta no mesmo tapete do quarto onde tantas e tantas vezes me fizera companhia. Ainda hoje tenho dificuldades em descrever o que senti nesse preciso momento. Algo se desmoronou dentro do meu coração porque a morte é sempre uma perda irreparável, principalmente quando vemos partir alguém. E a minha cadela preta era alguém para mim… Era mais do que alguém, era tudo quanto me restava de definitivo porque sabia perfeitamente que ela sempre me seria fiel. Mais dos que os amigos e os amores sempre efémeros. A partir desse dia o meu coração encheu-se de luto. Nunca mais consegui afeiçoar-me a um cão dessa maneira, porque nunca mais se apagou de mim essa terrÃvel sensação de perda. Tenho a certeza absoluta que a minha cadela Coimbra morreu de tristeza. Sei que ao partir de repente, teve a grandeza enorme de me permitir que me despedisse dela com lágrimas, enquanto cavava um buraco nas traseiras do meu quintal. Sei também que ela se recusou despedir-se de mim. Como a compreendo…!!! No dia em que me vim embora coloquei naquele pedaço de terra remexida, um punhado de acácias rubras a cobrir a sua campa. Nunca a esqueci… Descansa em Paz, minha querida amiga. No céu dos cães onde te encontras, lembra-te desta tua amiga que nunca por nunca deixou de ser fiel, à tua memória. No sÃtio onde te enterrei, ao lado de uma roseira, devem ter nascido com certeza… minúsculas joaninhas, que agora andam a sobrevoar descansadamente a mesma relva verde que tanto gostavas de mordiscar. Sabes? Tenho saudades infinitas, da tua fidelidade.
Vóny Ferreira
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