Djabal
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« em: Janeiro 19, 2009, 17:19:05 » |
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Luvas. Uma roupa que cobre as mãos e dá elegância, distância e distinção. Hoje, ninguém as usa. Meu pai as produzia. Aprendeu com meu avô. Chegou por aqui cheio de ilusões, montou o seu negócio e o fechou anos depois, depois de lutar muito. O negócio nasceu, cresceu e findou. Consigo imaginar a batalha travada antes de fechar a empresa. Ela sempre nos deu o sustento. Agora, nada. Acabou. Restei jovem e só. Guardei dele a imagem, a educação e os livros. Nada mais. Não conseguirei descrever a sua imagem, cada palavra que usar para descrevê-lo será uma traição em si mesma. Não me pergunte o porquê. A educação que ele me deu seguiu depois, no colégio, até o segundo grau. Nada, além disso. Não quis continuar a estudar. Não havia vontade, interesse, utilidade.
Comecei a trabalhar fazendo pequenas tarefas. Ganhava o suficiente para me sustentar. Lia. Conheci muitas pessoas, no trabalho e em todos os lugares. Lia. Observei como as coisas funcionavam. Lia.
Não tenho muitos livros. Penso que tenho o suficiente. Para ler e reler. Existem descrições, fatos, razões e conseqüências que leio e não consigo entender; entretanto, ao fazer uma nova leitura, uma ligação surge. Um raciocÃnio novo se apresenta. Encontro uma resposta em outro volume, em outra história. As conexões e os significados mais inesperados aparecem.
Devo admitir não ter encontrado uma ligação entre o livro e a vida vivida por mim. Tudo que aparece no texto não encontra conexão aqui. Aquela realidade escrita não existe, é uma descrição falhada da imagem do meu pai. Talvez. Sei lá. Uma coisa é ler. Outra, é viver. Depois de viver anos convivendo, ganhei uma filha que sustento e educo. O pai se foi. Com ele todas as outras pessoas se foram. A minha experiência é a seguinte: todos têm algum objetivo ao se relacionar. Obtido, tudo se esfumaça, assim, suavemente. Os contatos deixam de existir. Aprendi a lição ao descobrir qual era o interesse.
Você consegue sem nenhum ardil ou trapaça, apenas o suficiente para não morrer de fome. Se quiser, pretender algo mais, terá que lutar enganar, driblar e disputar para tanto. Uma disputa feroz. Não sou assim. Gosto de tudo na boa paz. Em todos meus volumes existem ações sem nenhum vÃnculo de interesse material. O interesse é de nÃvel diferente. Amor. Ódio. Ambição. Pátria. Religião. Ciência. E o que encontrei? Indiferença. Inveja. EgoÃsmo. Dinheiro. Cálculo. Indigência.
Esqueci de mencionar: recebi da minha famÃlia outra coisa, a minha aparência. Aprendi a me expressar com razoável clareza. Por isso, sou considerada inteligente, apesar do nome estranho: Sancha Wufniks. Todos ao meu redor dizem que deveria trabalhar em outra posição. O trabalho de auxiliar é pouco para minhas habilidades. Eu mereço mais.
Trabalho como empregada doméstica. Deixei de atender clientes ao telefone, repetir as mesmas fórmulas. Ou auxiliar nas tarefas de escritório e coisas parecidas. Não poderia alterar nada. Criar? ImpossÃvel. Percebi que esse trabalho não paga o suficiente para se viver de maneira independente. Quem aceita essa condição são pessoas que precisam trabalhar e, mais, dar algum alento à vaidade. General com soldo de sargento. Preferem ganhar menos e ter algum uniforme para esconder a sua miséria. Escolhi trabalhar como reco com soldo de sargento.
Eu nasci para trabalhar. Gosto disso. Faço pouco esforço e ele é muito bem recompensado. Consigo com as minhas diárias nos sustentar. Casa e comida. É bem verdade que moro em um cortiço. Não me importo. O meu quarto é limpo. Consigo pagar alguém para olhar a menina enquanto estou fora. Não quero colocá-la em creche. Não quero mais contatos. Conversar? Com ninguém. Só minha filha. No mais, converso. No Ãntimo estou calada.
Passei a visitar cemitérios. Buscava nomes. Nomes simpáticos, nenhum bizarro como o meu. Maria. Marina. Madalena. Elisa. Efigênia. Celeste. Antonia. Amélia.
Procurei emprego somente em casas bonitas. Ficava em todas elas por alguns meses. Estudava o ambiente, as pessoas, fazia o meu trabalho de campo. Sempre fiz o possÃvel para conversar o indispensável. Apenas fazer minhas tarefas, com discrição, asseio e rapidez. Lavar. Passar. Servir. Chamava atenção dos patrões, eles confundem polidez com ternura, educação com carinho. Causava inveja nas colegas.
Era considerada uma puxa saco. “Trabalhar direito, por essa miséria? Se liga, meuâ€. Como vocês sabem, eu não me importava. Nem um pouco. O dinheiro tinha destino certo.
Mudava de emprego a cada três ou quatro meses. O máximo que fiquei num lugar foi seis meses. Não sei o nome de ninguém. A partir do momento em que descobria o lugar onde se guardava algum objeto de valor, ou o encontrasse dando sopa, o tomava e pronto. Simples, sem testemunhas.
Pedia demissão naquele dia mesmo, antes que as coisas tomassem outro rumo. O emprego é fácil obter e fácil de largar. Nenhuma prestação de contas. Trabalhou. Recebeu. Fim.
Viver diversas personagens tem essa vantagem. Vários endereços, sim, eu tinha o cuidado de ter os endereços variados, todos falsos, para que qualquer busca resultasse num beco sem saÃda. Ninguém me conhece, ninguém pode dar alguma informação a meu respeito. Era um rosto, um verbo pálido, translúcido e um nome. Eu nem sei se ela – a investigação - ocorria imediatamente. A abundância é grande, o zelo é pequeno. A confusão, maior ainda. Acredito que ninguém dava pela falta.
Tampouco me importava com isso.
Procurava por um novo emprego, escolhia outro nome, e pronto. Eu me replicava em muitas. No centro da cidade, é muito fácil vender o objeto, seja ele qual for. Muitas pessoas compram artigos assim. Com essa renda suplementar, pagava a escola dela. O meu plano era trabalhar para dar algum estudo para a minha filha. Consegui bolsa em escola bacana. Não tÃnhamos em casa – de alvenaria - nada sem utilidade.
Poucos móveis, apenas os indispensáveis: cama, mesa, cadeiras, estante, armário, janela e só. Jamais dei valor a nada que fosse material. Apenas comprava livros para ela. Alguma música. E o que sobrava ia para a escola. Apesar de freqüentar a escola, ela aprendeu mesmo foi comigo. As coisas que as crianças davam valor, ela via que sua mãe não dava valor algum. Ela não se tornou ansiosa, nem desejava nada. Apenas aprendeu a ler e passou a ler comigo. Passou a ler para mim. É gostoso ouvir a sua voz, a sua entonação e a representação que ela fazia da cena lida. Conversávamos muito.
De quando em quando, eu dava sorte e conseguia alguma coisa de valor mais alto e sobrava algum dinheiro. Nós duas Ãamos a alguma instituição, das que existem por aÃ, e ficávamos algum tempo conversando com as crianças ou com os velhos que estavam lá. Imaginávamos algum pretexto e ficávamos lá para saber como as coisas andavam. Ensinei a ela, a não dar nenhuma importância para o que era dito. Apenas pedia que olhasse, vigiasse o comportamento das pessoas. Conversas, palavras, só as dos livros. No mais, só os atos. Era ele que nos ensinava e instruÃa. E a minha valente menina correspondia sempre. Escolhia o melhor asilo para doar.
Aprendemos a viver num sonho. Éramos felizes. TÃnhamos o suficiente para viver bem, sem excessos. Separávamos algum dinheiro para viajar. Aqui por perto tem uma praia magnÃfica. Adorávamos conhecer o mar. Conhecer o mar? Só outro devaneio. Apenas nos deixávamos embalar em suas águas. Ãamos conhecer as montanhas aqui por perto, sentávamos na grama e fazÃamos o nosso lanche. RÃamos muito.
Essa foi a minha receita de felicidade. Viver do trabalho e da abundância que encontrei. Abundância distraÃda. Num dos livros que eu li estava escrito que a propriedade é um roubo. Foi um dos poucos conselhos que segui. E percebi que se o contasse a alguém, teria muitos problemas. Nós não somos iguais. Todos são diferentes. Ocorre que uns são mais diferentes que os outros.
Ah. Ela se foi.
(continua...)
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