Djabal
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« em: Março 13, 2009, 20:33:43 » |
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O lobo, Fenrir, foi contido por uma corrente forjada com seis coisas imaginárias: “o ruÃdo dos passos do gato, a barba da mulher, a raiz da rocha, os tendões do urso, o hálito do peixe e a saliva do pássaroâ€... Quando chegar o crepúsculo dos deuses, a serpente devorará a Terra; e o lobo, o Sol.(Borges)
Subindo.
Quarenta e cinco anos depois, percorrer cinqüenta e cinco quilômetros em duas horas? Tanto tempo para a distância entre Canela e o Parque Nacional da Serra Geral. A imaginação não acompanha o ritmo variado da paisagem. Alguém que vive aglomerado se perde no verde estendido, a vista se confunde com o horizonte. Um ou outro animal que pasta. Uma cerca frágil demarca a divisa entre as propriedades. A monotonia provável e masculina do cenário nunca se estabelece de fato. Coxilhas em série ondulam a paisagem. Sinuosas, provocantes, feminis. Elas não se confrontam, elas surgem uma dentro da outra, e sugam. Entredevoram-se.
Encontro um pequeno gaúcho, com a sua roupa tÃpica, calça bombacha, chapéu desabado, lenço no pescoço, cinto largo, desproporcional. Mede um metro e quarenta centÃmetros, no máximo. Rosto queimado, sem se bronzear, apenas queimado, vermelho terra e bronze. Pele rija, dura e resistente. Porteira do Parque em Cambará do Sul. Ele me avisa que após a entrada encontrarei dois estacionamentos. “Escolha uma vaga. Te cuida. Há muita queda lá de cima.†Deseja-me um automático bom passeio.
Seguimos agora por um caminho largo, suficiente para dois carros paralelos, sem asfalto, coberto de pedras pequenas. Bem, algumas não são tão pequenas e obrigam a um desvio repentino, para um ou outro lado. Neles se formam buracos. E nele está o nosso destino, decorrente de todos os desvios que fizemos, afastando as pedras grandes, atingimos aquela nesga nua. Ela não suportando o contÃnuo das passagens e o peso de cada um, foi se afastando de lado, deixando um quebra molas ou quebra espinha, como presente ao invasor. Seria uma espécie de autodefesa? As pedras se tornariam protagonistas desta história pelo resto do percurso? O limite da estrada é difuso. Na maior parte do tempo, temos que seguir pela contramão. Ziguezagueando pela estrada, se quisermos ultrapassar o auto que vai à frente, ou ficarmos comendo a poeira.
A realidade é que não conseguimos usar apenas uma das duas alternativas, e ao compreender que o tempo não estava superestimado, nos recolhemos quietos dentro do veÃculo. Quietos como se estivéssemos dentro de um liquidificador processando pedras de gelo. Todos os equipamentos de segurança testados, aquele travesseiro de ar que nos afasta do sono eterno cismou de abrir, aconselhando uma parada. As folhagens das árvores empoeiradas desferiam lategadas. O inóspito desvendou-se, desnudado, e apresentou-se. Conversei com o homem que estava ao meu lado, um retrato mais novo.
Não chegarÃamos a tempo no Itaimbezinho. Aquela massa de neblina já havia subido do mar e de onde estávamos já podia ser vista. Uma nuvem estacionada no fim do caminho. Chegamos até a borda do abismo de novecentos metros de altura. Ele estava repleto da neblina. Estávamos ao lado dela, repentinamente, o vento a afastava e podÃamos ver o outro lado. Dois sinuosos muros de pedra, formando uma boca, do fundo da garganta um ruÃdo da água corrente, respirávamos as nuvens, uma lufada qualquer nos tiraria dali.
Encontramos um público variado, crianças, homens, mulheres de todas as idades; a maioria apenas chegava à borda, apesar de todo aparato esportivo, da bota ao boné. Ah, o repelente. Em falta: ânimo e coragem. Apenas uma senhora tentou – corajosa – a descida pela trilha. Voltou depois de quarenta minutos segurando o quadril com a mão esquerda e buscando um lugar para descansar e beber água, a descida foi demais para ela. O tempo estava abafado. O sol, impiedoso.
Voltamos pelo mesmo caminho, conversando sobre a vida. Sobre a incompetência da mãe, sobre a ausência do pai. SaÃa de casa, sem dizer nada a ninguém, voltava depois de três meses, como se não houvesse saÃdo.
- Incompetência da mãe?
- Sim, por se sujeitar a esse tipo de coisa, de guardar um rancor pelo resto da vida. Não conseguir ficar de pé e rejeitar essa situação. Viver amante da chantagem. Por nos considerar culpados pelo seu sofrimento. Por me culpar pela dieta que faço, pelos quilos que perco em demasia ou ganhos em excesso; pelas mulheres que arranjo, uma velha demais, outra nova demais, outra rica e exibida, finalmente essa última, pobre e ignorante.
- E agora? O pai morreu.
- Morreu sem abrir mão, um único dia sequer, da sua felicidade. Sempre viveu bem, egoÃsta, sem se importar com nada além do seu estado. Deixou-nos à vontade. Não sei se constituiu famÃlia, era um homem desenraizado. O homem queria se preservar. Afastava para longe de si, as ações que o emporcalhavam. Cavava fossos como podia. Valas aonde corriam o sangue das vÃtimas. Afastava para longe de si o mal, e com isso mostrava sua santidade. Ao contar os métodos alheios indicava o método de seu próprio segredo. Era apenas questão de tempo. Iludia olhares distantes. Recebi uma carta da dirigente do lar onde se abrigou os últimos anos, elogiando sua cortesia, conduta e disposição de ajudar.
Eu quase entendo. Hoje, faço uso desse colete para proteção da coluna e máscara contra bactérias, vÃrus, microorganismos agentes de infecções. Espasmos de dor. Tudo e todos são inimigos em potencial.
Encontramos nossos parentes e combinam almoçar. Comemos peixe e bebemos pinga com mel.
Ficamos frustrados pela neblina da manhã. Resolve ir até o Cânion Fortaleza para ver a pedra Milagre. Uma pedra de cinqüenta toneladas equilibrada numa base de cinqüenta centÃmetros. Afinal, é seu aniversário.
Enquanto tomam sorvete e se refrescam, faz o convite. O calor é muito forte. A estrada é muito ruim. Resolvem sair. Os outros protestam, ficam.
Outra estrada, bem mais larga, mais cinza, mais pedras, mais acidentada. Pensa na história do menino que foi encontrado lá embaixo depois de nove meses de busca. Apenas os ossos, limpos, brancos, obra de gavião real? Olho para cima e encontro alguns. Voos eternos, circulares.
- São seis reais o carro e cinco reais por pessoa. – diz o porteiro.
- Posso pagar na saÃda?
- Se eu fosse o senhor, não entraria. A neblina acabou de chegar. Não vai ver nada.
- Obrigado, mas vou assim mesmo.
Tive um sonho de estar na beira de um rio e era atingido por uma névoa, essa mesma névoa atemporal, esse perfume das araucárias, esse frio que entra no pulmão. Várias plantas cresceram na beira do cânion, a visão não é livre. Alguém as plantou. Tenho que caminhar para um ponto. Belvedere. Aquela é a vista permitida. Mais da mesma.
- Os nossos ossos são dinâmicos, renovados periodicamente pela ação de células de formação e reabsorção, um processo de remodelação. O meu corpo é meu mais novo inimigo. Agora resolveu não mais se renovar. Estamos em luta aberta. Como nós dois no passado. A mágoa também é atemporal.
- Que presente você ganhou.
- É um presente antigo, o processo já dura alguns anos. Fiz uma limpeza geral do corpo. Estou certo agora de conseguir vencer essa resistência dele. É apenas uma história a mais para eu compreender e viver e sair dela inteiro. Conheci o Cânion no Colorado. Dois mil metros de profundidade, quase fui levado pelo vento. Vou para a montanha sagrada de Kailash, no Tibete, um desfiladeiro três vezes mais profundo.
Sentamos em um banco de pedra, comemos um pão de queijo, tomamos um chá. Um beija flor aparece. Parado no ar. As asas batem numa velocidade insana. Cercados pela nuvem, tudo se esfumaça. Somente o zumbido da asa se ouve. O resto é silêncio.
Pago os ingressos. São dezesseis reais. Obrigado.
- O senhor pagou cinco a mais. O carro é seis e o SEU ingresso é cinco.
Estou só. Chego às oito horas, a tempo de comemorar o meu aniversário.
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