tambores na noite (1)

[Mel de Carvalho]

tambores na noite (1)
     e a noite avança
desmembrando, no galope das tropas,
qual bala de roleta russa, um a um, idílios claros e gostos limpos
de searas fartas em sementeiras de luz.

a palha onde nos deitámos castos, há muito apodreceu
na eira,

nos campos asfaltados da cidade
os velhacos saiem em jorros do ventre oco dos canos:
- toupeiras afrodisíacas perigam sem retorno
os alicerces
das torres imperfeitas a que chamámos  Liberdade.

tambores na noite
ainda
e os monstros pelágicos com iates arpoados à marina
no ópio do cheiro da nafta,
palitam dentes nas pernas escarlates de lagostas:
- empanturram-se  de lavagantes e de ostras,
lambuzam dedos na manteiga da torrada,
sugam o que resta do marulhar das ondas
por dentro do abrigo dos  búzios…

Oh, sapiente ignorância… Oh  gula omnipresente…

    quem lhes deu salvo-conduto?
    quem lhes pagou a fiança?
    quem lhes franquiou a porta divina da ilha?

em profética clarividência

fecho os abraços, cerro a boca:   cansei de ser viagem
de ser vaga, ventania, fola de  mar e  barcaça.
cansei de ser quem sou se te demites e os fungos proliferam
em candelabros torreões e vidraças,
se os olhos gangrenam, purulentas as pestanas, e estas
são virgulas de um poema,
de um tratado sistémico ,
que por certo, se te exoneras, camarada, não foi por ti que escrevi.

tambores ainda … ou apenas o ribombar próximo de  trovoada?


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(1) Peça de teatro de Bertold Brecht

[Tino Saganho]

Olá Mel!

Li o primeiro e gostei. Aguardo o 2º. Beijinhos

[Dionísio Dinis]

Uma linguagem plena de força num poema poderoso.Os meus aplausos!

[Abgalvão]

Adorei por tudo mas principalmente pela frontalidade! Há aqui palavras que são autenticas setas muito bem apontadas.

Destaco

e os monstros pelágicos com iates arpoados à marina
no ópio do cheiro da nafta,
palitam dentes nas pernas escarlates de lagostas:
- empanturram-se  de lavagantes e de ostras,
lambuzam dedos na manteiga da torrada,
sugam o que resta do marulhar das ondas
por dentro do abrigo dos  búzios…

 Os meus cumprimentos

[Mel de Carvalho]

A todos, e a cada um, agradeço reconhecida as vossas palavras.
Não podemos deixar de ser políticos. Ou melhor (a)politicos... 

Caro Tino: Este poema é único.  O (1) devia estar elevado ... não saiu. Como dizia uma amiga minha "temos pena" ... é então referente à nota de rodapé... "(1) Peça de teatro de Bertold Brecht" - Obra com título homónimo : "Tambores na noite".

Fraterno abraço a todos
Mel

[Goreti Dias]

Um poema que é uma faca nas consciências. Forte e decidido!
Beijo

[Mel de Carvalho]

Obrigada Goreti.
Beijo fraterno
Mel

[Renato Torres]

olá mel,

estou a chegar, e certamente nada sei (ainda) que possa movimentar o grito ulterior que adivinho expectante. é então que me lanço ao rizoma da busca, ousando ouvir -  urdimentos da tela brilhante - um chamado qualquer inscrito à guisa de título. ouvi o teu chamado, e não creio em acasos... aqui te mostras imperativa e sonora, na melhor tradição das paisagens sonoras contruídas por mãos sinceras, eivadas de argúcias que brotam quando se observa o mundo com olhos atentos. adorei ser recebido neste (novo) não-lugar pelos teus tambores noturnos.

abraços,

r

[Mel de Carvalho]

Seja bem vindo Renato ao seio do Escritartes de que me honro fazer parte desde as primeiras horas e, em particular ao que escrevo e aqui partilho.
A poesia, a prosa, são e podem ser, formas de socialmente intervirmos. É o caso deste texto que tão amavelmente comentou.

Bem-haja. Fraterno abraço
Mel