marcopintoc
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« em: Janeiro 21, 2010, 23:19:29 » |
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Passam por mim na longa avenida onde as montras das lojas parecem ter perdido o brilho de outrora. Olhos ávidos de comprar cravam-se, obstinadamente, no cimento do passeio por onde (passos que se arrastam , caminhos de desencanto ) passeiam a sua impotência consumista. Conto.
Um , Dois , Três, Quatro, Cinco. Este está desempregado Um, Dois, Três, Quatro, Cinco.
A mulher com excesso de peso e pálpebras enegrecidas de nada esperar do amanhã lança um olhar de ódio à negra , estranha, estrangeira , que limpa as escadas de um prédio. No crispar dos seus lábios lê-se a palavra “foraâ€. Na raiva do punho que se fecha na alça de um saco de plástico onde habitam parcas mercearias entende-se a inveja à esfregona empunhada por quinhentos euros mensais.
Prossigo a marcha, continuo a contagem , a enumeração fantasiada nos rostos de estranhos, os vinte por cento que vagueiam por terras iberas sem trabalho. Um , dois ( o homem da gabardina suja evidencia, para lá da sua barba de sete dias, que a desonra já causou danos para lá do recuperável ), quatro , cinco... Uma criança. Esta não pode estar na estatÃstica. Todavia o puxão impaciente da mãe , o aperto da bolsa contra o peito diz à menina do rosto trigueiro que é mais uma boca para alimentar. Um sopro de impaciência , um desejo que as tranças nunca tivessem conhecido a luz de Madrid , que se tivesse ficado , cataplasma de sémen num preservativo , óvulo não fecundado em manipulação quÃmica.
Ao fundo, Atocha. Os sons da memória dos mortos de Março desvaneceram-se , já não há flores no chão, a chama das velas há muito que foi trocada pelo grito do ardina : -Periódico , Periódico. Dos comboios suburbanos desaprendidos da sua lotação máxima saem figuras curvadas. Braços hesitantes estendem uma moeda ,agora preciosa, ao homem dos jornais. Mãos , trémulas, apressadas na procura da secção do trabalho , parca ilusão de meras páginas. Em contrapartida é extenso o rol de homens , mulheres , casais (quiçá em tempos felizes ) que atendem cavalheiros e tudo fazem por uma nota de cinquenta.
Nas narinas já não emana a tremenda recordação daquela manhã de vésperas de primavera , os odores da carne queimada e da pólvora foram substituÃdos pelo pivete dos corpos pouco higienizados que se apressam para as longas filas dos gabinetes de segurança social. Nos olhos congestionados que flutuam ,alheios; sobre o corpo emagrecido da fome ,iludida pelo aspirar da poluição da urbe , escreve-se a razão do esquecimento dos cadáveres. Para eles , foi rápido . Para eles , uma nação chorou. Para eles , houve a glória dos mártires . Para os vivos de hoje apenas a vergonha , a vergonha.
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